1,3 bilhão de toneladas de comida é desperdiçada anualmente, seja por falha logística e armazenamento, por problemas de padrão ou pela falta de consciência do consumidor, mas iniciativas inovadoras buscam soluções

O dia ainda nem amanheceu quando o agricultor faz a seleção dos alimentos que serão entregues ao comprador. Durante o processo de separação das espigas de milho, elas são divididas em quatro categorias: 1A, com os exemplares mais bonitos; 2A, com exemplares de médio valor comercial; 3A, com os exemplares de menor valor comercial; e os imperfeitos e variados, que não encontram compradores e, geralmente, são jogados fora.

A diferença entre as espigas de milho 1A e imperfeitas e variadas é meramente estética. Diferenças de padrão de coloração, formato e tamanho determinam as peças que serão enviadas ao comprador – que revende ao consumidor final em bandejas e que exige que cada uma das espigas tenha um determinado tamanho, definido em contrato. As que não se encaixam no perfil, via de regra, têm como destino a lata de lixo.

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De acordo com o relatório O valor das embalagens flexíveis no aumento da vida útil e na redução do desperdício de alimentos, publicado em 2015 pela Flexible Packaging Association (FPA) e traduzido pela Associação Brasileira de Embalagem (Abre), nos Estados Unidos, cerca de 34,7 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados anualmente, o que representa 40% de toda comida comercializada no país – e seu impacto na emissão de gases de efeito estufa chega à ordem de 27 milhões de toneladas de CO2e.

De acordo com o relatório Mudanças Climáticas, do World Resources Institute (WRI), no mundo inteiro o volume de alimentos desperdiçados é gigante: 1,3 bilhão de toneladas de comida em boas condições é perdido todos os anos – um terço dos alimentos produzidos para o consumo humano, gerando um prejuízo econômico estimado em US$ 940 bilhões. No Brasil, o desperdício ultrapassa 41 mil toneladas anuais.

O desperdício de alimentos tem dois gargalos principais. O primeiro deles está na perda que ocorre entre a produção e a logística que o carrega até seu ponto de venda. O segundo é onde mais comida é jogada fora: entre o vendedor e o consumidor final.

O documento da FDA informa que um terço das perdas de alimentos, em média, ocorrem nesta fase final: 35% dos vegetais frescos, 37% das frutas frescas, 22% das aves, 27% da carne bovina e 39% das aves perdem condições de consumo entre o varejo e as nossas próprias casas.

Cenouras danificadas. Crédito: Thomas Gamstaetter/Unsplash

Reaproveitamento alimentar: consumindo comida imperfeita

Aquela espiga de milho fora de padrão que seria desperdiçada começa a encontrar seu lugar na cadeia da alimentação. Há um movimento global de iniciativas locais dedicadas a dar valor comercial e social a este tipo de alimento. E um deles tem sede no bairro de Vila Guarani, na zona sul de São Paulo.

O projeto Fruta Imperfeita começou quando o engenheiro mecânico Roberto Matsuda e a engenheira de alimentos Nathalia Inada decidiram dedicar suas carreiras para desenvolver um negócio sustentável. Em 2015, o casal conversou com mais de 30 pequenos produtores da região de Atibaia, cidade no interior do estado de São Paulo onde Roberto cresceu, no sítio de produção de flores de seus pais, para entender quais as maiores dificuldades de seus negócios. A resposta foi praticamente unânime: o que fazer com os produtos fora de padrão?

“A gente percebeu a necessidade de conscientizar as pessoas de que esse problema existe, que a natureza produz alimentos fora de padrão comercial, mas que podem ser consumidos tanto quanto o bonito – e ainda hoje é jogado fora”, explicou Roberto. “Assim, nasceu um movimento de informação e conscientização.”

Roberto Matsuda, fundador do Fruta Imperfeita, analisa maçãs recuperadas

Roberto e Nathalia perambularam por escolas, clubes e diversas instituições para mostrar que os alimentos jogados fora têm valor. E perceberam que havia uma oportunidade de negócio. Colocaram um site no ar, conseguiram um carro para entrega e decidiram vender assinatura de cestas de frutas, legumes e verduras imperfeitos. “O cliente não escolhe, apenas informa quais são suas restrições. Montamos as cestas [que podem ter de 3 quilos a 10 quilos] de acordo com o que está disponível: vem do pequeno produtor, do produtor local e respeita a época da natureza”, explica Roberto.

No começo eram apenas 30 cestas. Hoje, são distribuídas 1.300 cestas semanais para uma base de 1.500 assinantes – e já passa dos 3 mil pedidos de assinatura. “Não aumentamos nosso serviço porque temos a preocupação em ser sustentável também na entrega e é preciso pensar também, do ponto de vista logístico, em como reduzir as emissões de carbono”, justifica Roberto. “As pessoas querem fazer parte de um movimento como esse, mas há muitas formas de colaborar: às vezes, é melhor encontrar o mercadinho do bairro e comprar o que vem do pequeno produtor”, recomenda.

De acordo com a empresa, a média dos valores por quilo dos alimentos é compatível com a dos mercados – as assinaturas começam em R$ 30 – e 30% mais baratos que os serviços de delivery convencionais. “Nossa proposta é resolver o problema do produtor, pagando um preço justo e gerando renda para ele. É uma forma de girar a roda, de fomentar um ciclo positivo”, conta Roberto. Atualmente, fornecem frutas, legumes e verduras 30 produtores e cinco cooperativas, que somam aproximadamente 8 toneladas de alimento por semana e 35 toneladas por mês.

Comida para quem mais precisa

O relatório produzido pela FDA indica que um dos principais motivos para o desperdício doméstico (em casas ou em cozinha de restaurantes) é o erro de cálculo na compra e no preparo dos alimentos: a comida que sobra é jogada no lixo. Apenas no uso doméstico dos alimentos, cada cidadão norte-americano desperdiça 132 quilos anuais de alimentos em bom estado de conservação. Além do óbvio impacto social e ambiental, economicamente isso representa US$ 161,6 bilhões perdidos anualmente.

Por outro lado, os EUA têm o pior índice de pobreza entre os países ricos, com mais de 40 milhões de pessoas com dificuldade de garantir comida na mesa. No Brasil, o número é maior: 53 milhões de brasileiros estão em situação de pobreza, sendo que 13 milhões passam fome. Levar comida excedente para quem precisa é a ideia que deu origem ao aplicativo Comida Invisível.

O app foi apelidado de “Tinder da comida”, porque seu objetivo é conectar pessoas, restaurantes, bares e mercados a ONGs, creches, abrigos e até pessoas físicas que precisem de alimentos. A advogada Daniela Leite, o jornalista Sergio Ignácio e a publicitária Flavia Vendramin criaram a organização que opera o Comida Invisível desde 2016.

A ideia começou a tomar forma quando Daniela mergulhou no dia a dia do Ceagesp, centro de distribuição de alimentos em São Paulo. A advogada trabalhou de graça em troca de informação e descobriu que dos 3 mil boxes, somente 150 já haviam doado comida e que apenas 30 faziam com regularidade. “O banco de alimentos da Ceagesp (espécie de central de doações) recebe 160 toneladas de alimentos por mês. São como 16 caminhões de lixo lotados de alimentos, que servem para 29 mil pessoas. Mas, por dia, são desperdiçadas 100 toneladas, ou dez caminhões”, afirmou a advogada ao caderno Paladar, do Estadão.

Coleção de pimentões. Crédito: Martin Adams/Unsplash

Uma das preocupações do Comida Invisível é dar segurança jurídica a quem decidir doar: quem se cadastra no app para receber os alimentos assina um termo de responsabilidade. Além disso, há um controle de qualidade para que a comida não seja entregue fora de condições de consumo. “Atuamos para facilitar as transações entre os pequenos negócios e as entidades, com a ajuda de agendamento e mapas para destacar a proximidade geográfica”, disse Ignácio em entrevista à Folha de S. Paulo. “No mundo atual, em que a tecnologia propicia estruturas horizontais, a mudança de comportamento que queremos incentivar tinha de ser digital”, concluiu.

Para Alan Bojanic, representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura no Brasil (FAO), projetos como estes são ótimas formas de pensar um consumo mais eficiente. “Todas essas iniciativas vão na direção correta para fazer melhor uso dos alimentos”, afirma.

Uso correto de embalagens é importante para preservar alimentos

De acordo com o levantamento realizado pela FDA nos EUA, o principal motivo para o desperdício de pratos prontos, carnes e laticínios é o comportamento do consumidor, mas no caso das frutas, legumes e verduras frescos, assim como pães e ovos, a culpa é da deterioração dos alimentos – resultado de transporte e armazenamento inadequados.

“No âmbito do desperdício é preciso conscientizar os consumidores para que eles tenham uma atitude melhor no momento de comprar alimentos, armazenar nos domicílios e, principalmente, no momento de utilizar”, propõe Bojanic. “Temos que mudar os hábitos para aproveitar tudo o que está nos alimentos.”

No âmbito da perda ao longo da cadeia produtiva, há duas alternativas: melhorar a logística e promover o uso de embalagens adequadas para cada produto. “No caso dos hortifruti, por exemplo, é preciso uma embalagem focada na redução da perda. Temos que capacitar os pequenos produtores para terem acesso ao conhecimento e às ferramentas para buscarem a eficiência”, afirma Luciana Pellegrino, diretora executiva da Associação Brasileira de Embalagem (Abre).

A conclusão da FDA em seu documento é de que muitos consumidores não reconhecem que as embalagens protegem os alimentos e as subutilizam, diminuindo sua longevidade. A recomendação da entidade é aumentar a conscientização do cidadão comum e propor soluções flexíveis que aumentem a vida útil dos alimentos.

Roberto Matsuda, da Fruta Imperfeita, relata que em caso de alimentos sensíveis, como tomates, por exemplo, o transporte e armazenamento inadequado pode resultar em perda de até 20% – e que quanto menor o lucro que o produto rende, menor a qualidade de sua embalagem, ocasionando índices altos de perda. “Os alimentos tipo exportação têm perda mínima, mas os diversos e imperfeitos vêm a granel e se desperdiça demais”, conta. “No Ceagesp, cerca de 80% da embalagem é incorreta. É muita coisa!”

Seleção de frutas e legumes no centro de distribuição do Fruta Imperfeita

O Fruta Imperfeita embala seus hortifruti com papelão, mas de um tipo retornável: como vão semanalmente à casa das pessoas, conseguem promover a logística reversa e reutilizar as caixas. Atualmente, há um retorno médio de aproximadamente 70%, sendo que metade do total volta em condições de uso: foram reaproveitadas 30 mil caixas, o que representa 8 toneladas de papelão.

“As embalagens podem ser a solução mais eficiente, adequada e sustentável, mas tem o problema do descarte incorreto”, analisa Luciana. “É preciso focar na conscientização do consumidor e no fomento à logística reversa. Temos que ir mais longe como sociedade: o Estado precisa contribuir e a indústria incentivar e valorizar o material reciclável”, conclui.

 

Conteúdo publicado em 3 de outubro de 2018

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