Grandes inovações e tendências que farão parte das nossas vidas em um futuro próximo costumam surgir no Vale do Silício, na ensolarada Califórnia, nos Estados Unidos. E, embora estejamos acostumados a ver essa região da costa oeste dos EUA com admiração, nem sempre eles acertam. A última moda por lá, de beber água crua (“raw water”, em inglês), não está só sendo questionada por veículos de comunicação, como combatida por especialistas.
Mas o que é água crua ou raw water?
O conceito de água crua descende, de certa forma, do movimento conhecido por “raw food”, ou simplesmente “comida crua”, que também recebe o nome de “alimentação viva” ou crudivorismo. A ideia por trás do movimento é consumir alimentos de origem vegetal crus, sem processamento ou cozimento acima de 42º centígrados. Seus defensores argumentam que, em grande parte dos processos de cocção — cozimento –, os alimentos perdem enzimas importantes e que por isso os alimentos crus seriam mais saudáveis.
O movimento de beber água direto da nascente, sem tratamento, não é novo, porém ganhou os holofotes recentemente porque algumas empresas começaram a engarrafar e vender a tal água crua.
A Live Water engarrafa água crua de uma nascente no Oregon e vende uma garrafa de 9,5 litros por US$ 36,99 (mais de R$ 100); a Turmaline Spring faz algo parecido no Maine, enquanto em San Diego a loja Liquid Eden vende variantes como água livre de flúor, isenta de cloro e uma água alcalina com “eletrólito mineral” por US$ 2,50 (cerca de R$ 10) a garrafa de pouco menos de quatro litros.
Já a Zero Mass Water ajuda as pessoas a coletarem água da “atmosfera em torno de suas casas” com a instalação de um sistema, o que não seria “água crua”, mas uma “alternativa para a água da torneira”, segundo declaração de um porta-voz da empresa ao jornal “The New York Times”. Desde novembro de 2017, a companhia vem recebendo pedidos de diferentes partes dos EUA e já recebeu US$ 24 milhões de investimento de organizações de capital de risco.

Nesse cenário, entram os questionamentos sobre os processos de filtragem, que também datam de anos idos. A adição de flúor à água pública para proteger a população de doenças e da contaminação é questionada desde a década de 1950 nos EUA.
O que dizem os defensores da raw water ou água crua?
Os defensores da água crua dizem que essa versão tem minerais benéficos que são removidos da água no processo de tratamento, pois não possui produtos químicos como o flúor da água que vem da torneira, nem passa por uma infraestrutura que pode comprometer a qualidade do líquido, como os tubos de chumbo. E mesmo a água engarrafada, tradicional, por ser tratada com luz ultravioleta e gás ozônio e passar por filtros que removem algas, mata as bactérias saudáveis — ou “probióticos”, para seus partidários.
Ao “The New York Times”, uma mulher adepta da água crua disse que já podia sentir os efeitos positivos do líquido na pele. “Era como se eu estivesse obtendo mais nutrientes do que como e bebo”, comentou. Para seus adeptos, a água crua, em toda a sua imperfeição, oferece mais benefícios a sua saúde e também mais sabor.
O que dizem aqueles que são contra a raw water?
Deixar de tomar água tratada para não mais consumir flúor não significa beber água pura. A água crua, não filtrada, direto de uma nascente, ainda pode conter produtos químicos como pesticidas e bactérias perigosas, além de fezes de animais. O tratamento da água, que remove bactérias, parasitas, pesticidas e outros contaminantes, não é apenas uma adição de flúor.
Especialista em alimentação, defensor da segurança alimentar e advogado, Bill Marler disse ao Business Insider que “quase tudo que é capaz de te deixar doente pode ser encontrado na água”. Segundo ele, a água não tratada e não filtrada, mesmo que venha dos rios mais limpos, pode conter fezes de animais, espalhando giardia, doença que causa sintomas como vômitos e diarréia e responde por mais de 4.500 internações por ano nos EUA. A hepatite A, que resultou em 20 mortes em um surto na Califórnia em 2017, pode se espalhar pela água não tratada, bem como E.coli e cólera. Ou seja, perigos não faltam.
“As doenças que mataram nossos bisavós foram completamente esquecidas”, disse o especialista. De acordo com ele, a maioria dos americanos não conhece pessoalmente alguém que morreu de hepatite A ou de cólera, graças aos avanços na tecnologia e nas normas de segurança, inclusive com a água. Como resultado, eles têm dificuldade em perceber os riscos envolvidos no consumo de água não tratada.
Os Estados Unidos, país que vive a febre da água crua, não tem um sistema de água perfeito, mas que se provou eficiente na medida em que melhorou a saúde da população ao longo do século passado. Com a introdução de processos de filtragem, cloração e saneamento da água potável pública, o número de pessoas infectadas por doenças transmitidas pela água, como cólera e febre tifóide, caiu a quase zero, diz Kellogg Schwab, professor de água e saúde pública na Escola Bloomberg da Universidade Johns Hopkins ao “The New York Times”. “Ter um processo de tratamento central da nossa água potável e, em seguida, distribuí-la para as casas individuais e para as empresas é um tremendo ativo que nós, como país, temos como certo”.
Beber água não tratada, especialmente diante dos agentes patogênicos que podem estar ali, invisíveis, pode expor a população a surtos de doenças mais uma vez, diz Vince Hill, chefe da Divisão de Prevenção de Doenças de Água do CDC (sigla em inglês para Centers for Disease Control and Prevention). “Quando a água não é tratada, ela pode conter produtos químicos e germes que podem nos deixar doentes ou causar surtos de doenças”, diz ele. Segundo o especialista, tudo o que você pensar pode estar em uma água não tratada: desde o escoamento agrícola, produtos químicos até bactérias e vírus. Nos Estados Unidos, a água é tratada para remover 91 tipos diferentes de agentes contaminantes.
Quanto às preocupações dos defensores da água crua sobre o flúor, que é adicionado na água para ajudar a prevenir a cárie dentária, Vincent Casey, gerente sênior de higiene no WaterAid, uma fundação sem fins lucrativos que promove a água limpa, diz que ele não é nocivo nos níveis encontrados na água potável, mesmo que seja perigoso em altas concentrações.
O motivo que leva as pessoas a buscarem água de uma nascente possivelmente poluída tem eco em outros movimentos extremos existentes não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, como o da antivacinação. Aqueles que optam por não se vacinar, por exemplo, apesar da ampla ciência que respalda o valor das vacinas, colocam os mais vulneráveis em risco, sacrificando a imunidade de toda uma sociedade.
Enquanto isso, em países em desenvolvimento, o acesso à água limpa e ao saneamento é uma enorme questão de saúde pública e também de direitos humanos. As doenças associadas à água, como a cólera, ainda são ameaças globais. Em pleno 2017, um surto de cólera — que é transmitido por água potável ou por alimentos contaminados com uma certa bactéria — atingiu 1 milhão de casos suspeitos no Iêmen. E esse é só um dos muitos exemplos.
E você, acha que vale o risco para estar na moda?
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O consumo de água contaminada mata milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Saiba no Mundo Educação que doenças podem ser desencadeadas pela água contaminada e sem tratamento.
Conteúdo publicado em 15 de março de 2018