O professor da USP e presidente da Associação Brasileira de Ciclo de Vida explica os fundamentos, metodologias e aplicações da ACV, técnica fundamental para medir os impactos ambientais de um produto

Nas últimas décadas, o tema da sustentabilidade ganhou espaço até então inédito na sociedade e no setor produtivo. A preocupação com o impacto ambiental cresceu e os aspectos a serem considerados para um desenvolvimento realmente sustentável aumentaram: não basta mais cumprir limites de emissão de poluentes de uma unidade industrial. É preciso também gerir os impactos que o produto propaga ao longo do ciclo de vida, além de entender e mitigar os riscos sociais envolvidos.

A Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) foi desenvolvida para dar conta da alta complexidade do cálculo de todos os impactos ambientais em todas as etapas de produção, consumo e descarte de um produto, seja ele um bem de consumo ou um serviço. Gil Anderi da Silva é um dos pioneiros no uso da ferramenta no Brasil. Ele é professor associado do Departamento de Engenharia Química (USP) com pós-doutorado pelo Georgia Institute of Technology (EUA), um dos fundadores e atual presidente da Associação Brasileira de Ciclo de Vida (ABCV).

Em entrevista exclusiva à bluevision, Gil Anderi explicou o conceito de ciclo de vida e os fundamentos, metodologias e aplicações da ACV. Leia a seguir:

Explique o conceito de ciclo de vida de um produto ou um serviço, por favor.
Quando comecei a mexer com ACV, ainda no século passado, uma empresa tinha como preocupação ambiental o que ocorria somente dentro dos muros da fábrica. O foco era o seu processo sem se importar com o que vinha antes ou depois. Com a evolução do conceito, se percebeu que o produto deve ser avaliado até chegar ao consumidor final. Por exemplo, um produto intermediário da indústria petroquímica é trabalhado em outra indústria depois. Ou seja, tem todo um caminho para ser produto final e tem que se pensar também na matéria-prima e de onde ela vem. Então, se focou no produto, mas se descobriu que isso era insuficiente para saber os impactos ambientais associados a ele.

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Para avaliar os impactos associados, se entendeu que é preciso observar uma longa cadeia de produção, desde quando se retira o recurso natural, passando por série de estágios de uma cadeia industrial até fabricar o produto, e que seus impactos seguem ainda na distribuição, no consumo e na destinação final. Então, o ciclo de vida do produto é o conjunto de ações desde a retirada do conjunto de elementos da natureza, passando pelos elos da cadeia produtiva até a distribuição, consumo e destinação final.

E sempre tem a pergunta que o “aluno chato” te faz: por que chamar de ciclo? Porque o conceito teve origem na ideia de que o começo e o fim do produto têm o mesmo lugar, que é o meio ambiente. Então, de toda forma, ocorre um ciclo.

Para que serve a avaliação desse ciclo de vida? Que tipo de informações e/ou conclusões são possíveis tirar dessa metodologia?

A abordagem embute o ciclo de vida ao meio ambiente e a preocupação de saber o quanto um produto impacta o meio ambiente. A avaliação tem essa conotação. Eu sou da corrente que afirma que todos os impactos ambientais ocorridos no planeta estão associados a produtos. Cada ação ao longo do tal ciclo de vida do produto potencialmente provoca um impacto. Quando se retira a primeira gota de petróleo da natureza, gota essa que algum dia fará parte de um plástico da garrafa de água, esta garrafa de água já começa a ser responsável por algum impacto no meio ambiente. Uma ACV completa pega todas essas ações e quantifica o quanto o produto é responsável pelo impacto global total. Este é o conceitual, também tem que modelar para tornar viável depois. Em resumo, o resultado é isso: avalia e quantifica os impactos ambientais associados a produtos que necessariamente chegam ao consumidor final.

Qual é o fundamento geral do método e o principal objetivo ao se aplicar o ACV sobre um produto?

É essencialmente comparativa, compara o impacto de dois produtos. Anos atrás, um gerente da Braskem me pediu a comparação entre dois produtos da empresa, o PVC e o polietileno. Disse que não é possível, pois são dois produtos intermediários e não posso comparar o desempenho de ambos porque da fábrica até a volta à natureza tem muita coisa para acontecer. Sugeri a ele que poderíamos comparar 1 metro de tubo de PVC e 1 metro de tubo de polietileno. É preciso que se faça o estudo sobre um produto que chega ao uso final.

Mas essa característica comparativa precisa de cuidado. Vi uma matéria na TV afirmando que churrasco tem mais impacto ambiental que o uso de carro. Isso mistura dados que não podem ser comparados. Só podemos comprar impacto ambiental em produtos que exercem a mesma função; e a finalidade do produto é atender uma necessidade ou desejo do ser humano. Você não se alimenta com o carro ou se transporta com um pedaço de carne. Você precisa comparar o atendimento de uma necessidade com o produto A e o produto B, como, por exemplo, etanol e gasolina. E é preciso ter claro que a comparação não deve se tratar de comparar a capacidade de gerar energia de cada um, mas a capacidade de transportar um sujeito por, sei lá, 1.000 quilômetros.

Além de propor a comparação entre dois produtos, a ACV tem outros objetivos: rotulagem ambiental e geração de oportunidades de melhorar o desempenho ambiental de produtos. Sobre a rotulagem, o estudo de ACV tem como finalidade produzir o rótulo ambiental tipo 3, definido em norma ISO, cuja exigência vem crescendo muito, principalmente no mercado internacional.

Sobre a identificação de oportunidades, vou contar um exemplo. Fizemos um trabalho aqui na época da polêmica das sacolinhas plásticas de mercado comparando-as com sacolas de seis materiais diferentes. Tomamos um susto: a sacola de polietileno verde deu um resultado muito diferente. Fomos atrás do dado e entendemos que as informações estavam defasadas, pois apontavam o uso de um agrotóxico que já havia sido descartado e até banido no país – e que, no estudo, aumentou muito a toxicidade do solo. Neste caso, se os dados estivessem corretos, seria uma oportunidade de identificar em que ponto o impacto está grande e trocar o agrotóxico que tem alto impacto ambiental por outro.

Como tornar possível comparar questões ambientais diferentes, como uso do solo, gasto de recursos hídricos e emissão de gases de efeito estufa, por exemplo, para definir se um formato produtivo é mais ou menos eficiente que outro?

O resultado de um estudo de ACV normalmente é uma tabela simples com duas colunas. Na primeira coluna, tem lista de categorias de impacto ambiental, por exemplo, mudanças climáticas, camada de ozônio, toxicidade, consumo de recursos naturais, acidificação etc. Na segunda, seus índices.

O primeiro passo para executar o estudo é identificar aspectos ambientais, ou seja, toda interação do homem com o meio ambiente que provoca impacto. Vejo etapa por etapa, e vejo o quanto o homem interage com o meio ambiente. São três formas: retirando recursos da natureza; jogando porcaria na natureza; transformando o meio físico – transformar o meio físico, no caso, é a contaminação do solo na agricultura, por exemplo. Cada interação é expressa em fluxo de matéria ou energia e tem centenas ou até milhares de aspectos ambientais. A metodologia abriga tudo para gerar um índice. Por exemplo, se agrupa todas as emissões de todos os tipos de gases que provocam a destruição da camada de ozônio e faz um indicador de impacto daí.

O resultado, digamos, puro e científico considera de 10 a 15 indicadores de dois produtos e define a comparação usando a mesma metodologia para cada categoria de produto. Por exemplo, se vamos avaliar sacos de transporte de pó em grande volume, vamos aplicar a mesma metodologia para avaliar o plástico e o papel. No caso do etanol e da gasolina, você compara e vê que nas 15 categorias, os números variam. Você apresenta o que os números mostram, mas é difícil ter uma conclusão ali. Assim, a norma ISO coloca como operação adicional a normalização da tabela de indicadores: pondera e dá pesos tendo como referência índices globais para chegar a um indicador único. O problema é que isso não tem base técnica ou científica.

A importância relativa que os atores impõem sobre as categorias em si é totalmente subjetiva. Você acha que o fator mais importante são as mudanças climáticas, eu acho que é a toxicidade. E ambos estamos certos. Ou seja, é preciso ter muito cuidado, ter o estudo feito com as mesmas bases metodológicas, as hipóteses precisam estar bem explícitas no relatório e a normalização tem que ter o mesmo método. Assim, é preciso divulgar bem os resultados do estudo e não dourar nenhuma pílula para um lado ou outro.

Como a ACV pode guiar a formatação de políticas públicas eficientes, além de sua utilidade para a indústria produtiva?

Em políticas públicas particularmente no setor de compras públicas, compras com o viés sustentável, verde, isso tá sendo muito debatido. A Cetesb, no estado de São Paulo trabalha bastante isso. Mas é algo complicado de analisar porque segue regras do governo e são baseadas em outros critérios além da ACV, então há dificuldade em estabelecer um padrão. E particularmente a ACV tem suas próprias dificuldades de interpretação dos dados, então é complicado para ser aplicada como política pública no Brasil. Mas, seguramente, funciona bem como um guia.

No mundo, a OMC aceita o cumprimento de normas técnicas internacionais e isso mudou todo o mercado internacional. No Brasil, a norma ISO não é obrigatória, mas o Inmetro e a Fundação Vanzolini já têm programas que produzem análise de rotulagem tipo 3. No exterior, já há mais avanços. França e Alemanha têm muitas coisas feitas. Os EUA têm um programa interessante que produz informações para um aplicativo no qual o consumidor pode escolher, com base na ACV, o que mais lhe interessa na gôndola do mercado.

A metodologia ACV pode ser usada junto ao método cradle-to-cradle de forma complementar uma a outra ou são formatos que se opõe? Como ambos colaboram para fomentar a economia circular?

Estive em um congresso certa vez e perguntei a dois especialistas em economia circular sobre a diferença entre ela, o berço-ao-berço [ou cradle-to-cradle] e a ecologia industrial e eles não souberam apontar. Olha, tudo que envolve a diminuição de impacto ambiental eu estou de acordo, mas acredito que, embora o fator econômico seja importante, não deva ser tratado como prioridade. Na minha visão, o tripé da sustentabilidade deveria ter apenas duas bases: ambiental e social.

No meu modo de ver, o berço-ao-berço reaproveita resíduos que algum elo da cadeia vai dispor e os utiliza em outro elo. A poluição zero não existe, mas o quanto mais puder evitar de porcaria no meio ambiente, mais a natureza agradece. E parece que essas técnicas, como a economia circular, fazem isso. Mas não vejo a novidade. Quando falamos em ciclo de vida, pensamos que o berço e o túmulo são o mesmo ambiente, ou seja, a natureza. Então, berço ao berço significa o mesmo. A ideia é aproveitar e transformar rejeitos em insumos, seja da mesma cadeia produtiva ou de outra. A ACV é a técnica que melhor fornece informações: pega todo o sistema, tem recortes específicos e indica encaminhamentos de solução de problemas, mas não dá a resposta.

Conteúdo publicado em 8 de maio de 2019

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