Em 2040, a Arábia Saudita será o nono país que mais sofrerá com a escassez de água no mundo. Embora ainda longe do ideal, a posição é mais confortável do que ela já foi, segundo relatório do World Resources Institute. Isso porque, nos últimos anos, o país resolveu apostar em tecnologias alternativas de produção de água, como a dessalinização. Como se sabe, os oceanos cobrem mais de 70% da superfície da Terra, mas essa água não é doce nem própria para consumo humano, o que torna a situação da escassez tão grave quanto irônica. Afinal, somos o planeta água, mas a maior parte dela é imprópria para nosso consumo.
A Arábia Saudita não será o único país a sofrer com a crise hídrica que se anuncia. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), as reservas hídricas do mundo devem encolher em 40% até 2030 enquanto a demanda pelo recurso deve aumentar em cerca de 55% até 2050. Todos serão afetados. Nesse sentido, apenas parte da solução do problema passa pela dessalinização – cada vez mais comum em países ricos em energia e próximos do mar. Outras nações, porém, terão de recorrer a outras ferramentas para diversificar sua produção do precioso recurso. A própria natureza pode trazer soluções, segundo relatório da mesma ONU.

A aposta na dessalinização
Em dezembro de 2015, a usina de dessalinização saudita que fica em Ras al-Khair alcançou o nível de produção plena, e desde então, é capaz de produzir um bilhão de litros de água por dia, tornando-se a maior do mundo. É volume suficiente para atender as necessidades básicas diárias de 9 milhões de pessoas, segundo a ONU. Antes, o posto de maior usina dessalinizadora do planeta era de uma em Tel Aviv, Israel, que produz cerca de 624 milhões de litros diários de água potável. Israel também entre os 10 países que mais sofrem – e devem continuar sofrendo – com a escassez do recurso.
A tecnologia envolvida nos processos mais modernos de dessalinização não para de avançar. Hoje, a osmose reversa, uma das técnicas mais eficientes de dessalinização, funciona empurrando água salgada em altas pressões através de uma membrana com furos de um quinto de nanômetro, ou seja, 375 mil vezes mais finos que um fio de cabelo. Esse orifícios são suficientemente pequenos para bloquear as moléculas de sal e suficientemente grandes para permitir a passagem das moléculas de água. E graças à tecnologia, que avançou nos últimos tempos, existem materiais e técnicas de tratamento prévio que fazem com que essas membranas funcionem com mais eficiência por mais tempo e sem entupimento, como acontecia no passado.

Os impactos ambientais da dessalinização
Todos os processos de dessalinização atuais exigem grandes quantidades de energia para acontecer. Ainda que a osmose reversa seja mais eficiente, energeticamente, que o método mais tradicional de aquecer e evaporar água salgada para obter água pura, ainda trata-se de um processo que requer muita energia. Não à toa, ele é usado em larga escala por países ricos em energia – muitas vezes derivada do petróleo. Nesse sentido, há preocupação ambiental com a produção dessa energia e a pegada ambiental que ela deixa.
Outro possível impacto ambiental importante da dessalinização é o descarte do sal retirado da água do mar. Segundo declarou Floris van Straaten, da empresa que supervisionou a construção do projeto Ras al-Khair, à BBC “é preciso garantir que a água muito salgada seja deslocada para um local suficientemente longe do mar para que não haja recirculação desta água”. Ainda segundo a BBC, nos Estados Unidos, alguns grupos têm entrado na justiça para evitar a construção de novas usinas de dessalinização alegando que ainda não se sabe, ao certo, os impactos ambientais da salmoura. Preocupa, também, o fato de que a água do mar é dragada por máquinas que, frequentemente, puxam peixes e outras espécies marinhas.

A natureza como aliada
Durante o Fórum Mundial da Água, evento realizado em Brasília em março deste ano, a ONU lançou um relatório em que apresentou o conceito de “Soluções Baseadas na Natureza” (nature-based solutions) para a produção de água. Como o próprio nome sugere, essas soluções utilizam, ou simulam, processos naturais para tratar dos desafios contemporâneos ligados à água. Seus objetivos são aumentar a disponibilidade da água (a partir da retenção da umidade no solo e a recarga das águas subterrâneas, por exemplo), melhorar a qualidade da água (criação e preservação de zonas úmidas naturais e artificiais e faixas de mata ciliar) ou, ainda, reduzir os riscos associados aos desastres relacionados à água e às mudanças climáticas (por meio da restauração de planícies de inundação e jardins suspensos).
Ou seja, as soluções baseadas na natureza são processos ecológicos conduzidos pela, em grande medida, pela vegetação e pelos solos em florestas, pastagens e zonas úmidas, assim como em paisagens agrícolas e urbanas, que desempenham papel importante na movimentação, armazenamento e transformação da água.
O ponto principal é que o relatório reconhece a água não como um elemento isolado, mas como parte integrante de um processo natural complexo que envolve evaporação, precipitação e absorção da água pelo solo. A presença e a extensão da cobertura vegetal – como pastagens, zonas úmidas e florestas – influencia o ciclo da água e pode ser o foco de ações para a melhoria da qualidade e da quantidade da água disponível.

A agricultura e a produção de água
Mundialmente, a agricultura é responsável por cerca de 70% do consumo de água, enquanto a indústria responde por 20% – incluindo a geração de energia elétrica – e o consumo doméstico, 10%. Mas, ao mesmo tempo em que a agricultura é a maior consumidora, ela também pode ser a maior aliada na produção de água. Com o uso de conceitos relacionados à agricultura sustentável, o agricultor é capaz de aumentar a infiltração de água no solo, por exemplo, enriquecendo o lençol freático, o que têm impacto positivo na produção de água.
No Brasil, o projeto “Programa Produtor de Água”, da Agência Nacional das Águas (ANA), apoia, orienta e certifica práticas que visem a redução da erosão e do assoreamento de mananciais no meio rural – medidas que têm reflexo na produção e oferta de água. No âmbito do projeto, foi adotado o modelo de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
O PSA é uma forma do beneficiário ou usuário do serviço ambiental retribuir aos provedores do serviço através de recursos financeiros ou outra forma de remuneração. Hoje, segundo a ANA, o programa tem 57 projetos em uma área equivalente a 400 mil hectares. Mais de 2 mil agricultores recebem por serviços ambientais que impactam cerca de 35 milhões de pessoas em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Palmas, no Tocantins.
“Queremos estimular boas práticas que facilitem a infiltração de água no solo”, diz Devanir Garcia dos Santos, coordenador de Implementação de Projetos Indutores da ANA, entre eles o Programa Produtor de Água. “Hoje temos chuvas intensas de curta duração e um solo que está mais impermeabilizado por atividades como a agricultura e a urbanização – ou seja, a água não está chegando ao lençol freático, por isso temos pouca reserva no solo”, afirma. “Quando você melhora a capacidade de infiltração do solo, você faz com que boa parte da água que causava enchentes se infiltre neste solo. Desta forma você está produzindo água para as atividades econômicas”, resume Santos.
O programa passou a identificar e orientar o uso de uma série de técnicas que melhoram a infiltração. Rotação de culturas, adubação de áreas de pastagem e manejo do gado para evitar regiões desnudas são algumas, além da quebra do terreno para facilitar a infiltração e a construção de canais em nível para retenção de água.

O papel do campo e da floresta
Uma das formas de produzir água no campo passa pela conservação e pela preservação da pouca vegetação nativa das bacias. Reflorestar pontos da zona de recarga por onde a água entra para alimentar o lençol freático também é fundamental.
“A Costa Rica é um bom exemplo de produção de água”, lembra Santos. “Eles se preocupam muito mais com a floresta – e se a gente pudesse voltar a ter mais áreas com floresta, seria uma maravilha no esforço para combater a escassez”, afirma. “Mas, como isso não é possível, temos outras opções”, diz ele, referindo-se ao Programa Produtor de Água. “O que estamos fazendo no Brasil é vanguarda pois estamos fazendo com que aquela área que produz grão, leite e carne, seja também produtora de água. O mesmo espaço serve para recolher e infiltrar água”, explica.
Em 2006, um estudo da Embrapa já chamava a atenção para a expansão dos centros urbanos, a intensificação da industrialização e a ampliação da agricultura irrigada. “A água, sob a forma de chuva, segue três caminhos: evapora-se; escorre superficialmente ou infiltra-se no solo. No primeiro caminho, incorpora-se à atmosfera, podendo formar novamente nuvens. No segundo, aumenta as vazões dos rios, escorrendo pelos cursos até alcançar os oceanos. E, no terceiro, infiltra-se nas camadas sub superficiais ou profundas, enriquecendo os lençóis subterrâneos. O aumento da infiltração de água passa, fundamentalmente, pelas áreas de cobertura vegetal da bacia hidrográfica contribuinte”, defende o documento.
Ainda de acordo com a análise, as ações de manejo integrado de bacias hidrográficas devem transcender o enfoque puramente agrícola. “Dentro dessa ótica, o espaço rural assume relevância não só na produção de alimentos e fibras, mas também como produtor de água em quantidade e qualidade satisfatórias, para utilização múltipla por outros segmentos da sociedade”, explicam os autores do estudo.

Campo e cidade podem contribuir
De acordo com Santos, da ANA, embora o campo seja mais adequado para as medidas de ampliação da infiltração e produção de água, as cidades, ainda que amplamente impermeabilizadas por cimento, também podem contribuir. A expansão de áreas verdes e a criação de caixas de infiltração nas casas e apartamentos para recolher água do telhado e a direcionar para a solo não impermeabilizado, são algumas.
“Além da coleta de água no telhado, existe também o reuso de águas cinzas, que são as águas da pia e da máquina de lavar”, afirma. Essas águas podem ser usadas para lavar o carro e o quintal, por exemplo, além de pisos internos de área molhadas, como cozinha e área de serviço. Adaptar a casa, trocar o sistema de descargas por um mais econômico, ou ainda colocar um chuveiro que mistura ar nos jatos de água são boas opções.
Esforços para usar melhor os recursos disponíveis em áreas atendidas pela rede de distribuição de água também são fundamentais. Hoje, 37% da água tratada é perdida na rede de distribuição. Também não colabora o fato de que apenas 39% do esgoto brasileiro recebe algum tratamento, enquanto o resto vai direto para a natureza. Fica claro, portanto, que as soluções de ampliação e diversificação da produção de água precisam ser pensadas de maneira ampla. Ou seja, de forma que sejam contemplados diferentes aspectos da questão – as diferentes realidades no campo e nas cidades, as perdas na distribuição, a impermeabilização do solo e, fundamentalmente, os entraves no caminho da infiltração e proteção do líquido.
Conteúdo publicado em 10 de março de 2019