
Ex-relatora da ONU para questões de água e saneamento, a portuguesa Catarina luta, desde pequena, pelos direitos humanos e pelo fim das desigualdades sociais
Quando era pequena, passava na TV de Portugal uma série francesa chamada “Era uma vez… o homem”. Era um desenho animado que contava a história da humanidade, eu assistia e vivia em grande angústia, pois tudo já havia sido inventado. Acho que fui trabalhar com direitos humanos porque meu grande objetivo na vida era trabalhar em uma área onde nem tudo estivesse inventado. Na área de direitos humanos realmente não está tudo inventado. O tema das desigualdades é algo que me incomoda imensamente, o fato de os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) já trazerem uma grande referência à eliminação das desigualdades é uma vitória, mas eu gostaria que existisse menos desigualdade no mundo. Essa é minha luta na vida, fazer as pessoas perceberem que aqueles que têm muito não deveriam ter tanto, que eles deveriam compartilhar um pouco, e que as políticas públicas deviam ser elaboradas de maneira a dar mais a quem não tem nada e tirar alguma coisa de quem já tem tanto. Eu queria conseguir convencer os poderes públicos de que esse sistema atual não funciona. E não temos quer ir para o Comunismo, nem tem que ser igualdade total. Não é disso que estou falando, falo da mais abjeta miséria. É uma afronta à dignidade do ser humano. Todos temos direito a um mínimo de dignidade e quem tem muito pode abdicar de um pouco e aí os governos é que têm obrigação de adotar políticas públicas que ajudem os mais ricos a seguir esse caminho. É isto que eu quero, é pouco.
Catarina de Lonet Delgado Truninger de Albuquerque Santos Lima, ou apenas Catarina de Albuquerque, foi a primeira relatora das Nações Unidas (ONU) para as questões de água e saneamento e teve importante participação no reconhecimento do direito humano à água e ao saneamento. Formada em Direito, ela conseguiu realizar o sonho de trabalhar com direitos humanos, mas só depois de terminar a faculdade, curso que detestou desde o início. “Eu falava todo dia para minha mãe: ‘quero desistir, quero desistir’. E a minha mãe sempre dizia ‘aguenta, vai aguentando’. Quando cheguei ao final do primeiro ano, pensei: esse ano foi tão horrível que não tenho coragem de mudar. Porque se mudo para outro curso e esse novo curso é horrível assim, eu perco esse sofrimento, então acabei – e acabei aqui”.
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Na questão da água, entretanto, ela caiu de paraquedas, eleita entre 300 candidatos. “Tive que correr muito atrás, pois não sabia nada. Comecei a estudar e agora já consigo nadar, já consigo ficar com a cabeça acima da água”, conta ela. Um dos muitos aprendizados que ela teve trabalhando com o tema foi o de descobrir sua própria ingenuidade. “O que mais me chocou foi ver que nos países mais ricos do mundo, em que há dinheiro para comprar comida orgânica para cachorro, e onde há dinheiro para as coisas mais excêntricas, como tomar banho todos os dias com leite de burra, há pessoas que não têm acesso a banheiros e há pessoas que não bebem água potável. A discriminação existe em todos os países do mundo, em todos os países existe um segmento da população que é esquecida, marginalizada, maltratada. Pessoas que não têm voz, que não contam”.
Nascida na época pós-ditadura, Catarina teve um avô, materno, que financiou a resistência ao regime ditatorial (1926 a 1933) no exílio, e aprendeu que era necessário lutar pela democracia dentro de casa. “Se por um lado nós temos a sorte de nascer em uma família que nos dá muito, temos dinheiro para comer e termos escola para ir, por outro temos uma obrigação de retribuir à sociedade. Portanto eu tinha as duas coisas em casa: vontade e necessidade de retribuir, e desejo de lutar pelos direitos. Acho que foi assim que aconteceu: um coquetel explosivo”.
Aos 47 anos, casada e com dois filhos, a especialista conta que adora cozinhar, e que sabe fazer as principais especialidades portuguesas e internacionais. “Faço muita coisa e sou muito elétrica, acho que cozinhar é uma forma de acalmar, de estar focada, de relaxar”.
Desde jovem a questão dos direitos humanos esteve presente. Ainda adolescente, antes mesmo da universidade, Catarina ia para as favelas de sua cidade natal, Lisboa, para ajudar outros jovens a fazerem os deveres de casa. Seus filhos, Mariana, de 14 anos, e Rodrigo, de 16 anos, seguem seus passos. “Minha filha é feminista. Sempre que pedem para ela apresentar um trabalho sobre alguém, um químico famoso, um biólogo famoso, um não sei o que famoso, ela diz: ”ó, mãe, temos que arranjar uma bióloga famosa, uma química famosa, uma matemática famosa. Essa está garantida. Já ele tem um grande interesse na área de relações internacionais e direitos humanos, e sempre que apresenta um trabalho também vai para esse lado. Espero que fique lá qualquer coisa assim, um pouquinho desse conceito, de empatia, de compaixão para com os outros, para com aqueles que têm uma vida pior que a nossa. Assim espero, a gente não sabe.”
Conteúdo publicado em 27 de março de 2018