Programa “Empoderando Refugiadas” trabalhou com mais de 80 mulheres e empregou 20 em empresas parceiras no Brasil. Conheça alguma dessas histórias de superação
Lara Lopes, 34 anos, teve que deixar sua terra natal por um único motivo: ela é homossexual. Em Moçambique, seu país de origem, amar e se relacionar com outra pessoa do mesmo gênero era crime até 2015. Para não sofrer mais perseguições, em setembro de 2013 ela veio para o Brasil. Este foi o mesmo destino na família Zelesa, que deixou a República Democrática do Congo em outubro de 2015. Antigo Zaire, a nação africana foi epicentro de um conflito armado que já obrigou mais de 4 milhões de pessoas a abandonarem suas casas.
O número de refugiados no Brasil cresce todo ano. Em 2017, de acordo com a Acnur (Agência da ONU para Refugiados), foram 33.866 solicitações de refugiados para receberem o reconhecimento de sua condição pelo governo brasileiro. Hoje, no Brasil, vivem, oficialmente, 10.145 refugiados de 82 diferentes nacionalidades. Deste total, 29% são mulheres.
Chegar a outro país, cuja cultura, códigos sociais e língua são diferentes, é um desafio e tanto que pode se tornar ainda maior quando o refugiado é uma mulher. No caso das refugiadas, a vulnerabilidade social é maior e as chances de conseguir emprego mais restritas, mesmo no caso de profissionais bem sucedidas em seus países de origem. Isso se explica: boa parte das vagas oferecidas envolve trabalhos braçais e, nesses casos, os empregadores frequentemente privilegiam homens.
Dar condições econômicas e sociais para que estas refugiadas desenvolvam sua vida no Brasil é, ao mesmo tempo, questão humanitária e oportunidade para a construção de uma sociedade e um mercado de trabalho mais diversos e dinâmicos.
Empoderando Refugiadas
Este é o pensamento que norteia o projeto “Empoderando Refugiadas”, uma iniciativa coordenada pela Rede Brasil do Pacto Global da ONU, a Organização das Nações Unidas, em parceria com a Acnur e a ONU Mulheres, além de organizações e empresas parceiras. “As mulheres refugiadas trazem com elas bagagem profissional, energia e uma força extraordinária para refazer suas vidas em outro país”, diz Isabel Marquez, representante da Acnur.
Entre 2016 e 2017, o Empoderando Refugiadas recebeu mais de 80 mulheres em encontros mensais de aconselhamentos sobre direitos, planejamento profissional e financeiro e empreendedorismo. Lara Lopes e as jovens Lúcia Zelesa, 20, foram duas das 41 delas que também receberam coaching de carreira. Ao fim da primeira turma, 20 mulheres estavam empregadas.
Em 2018, a organização do projeto estar formando um grupo de 50 refugiadas. O programa, que começa em julho e já está com as inscrições encerradas, termina em novembro. A primeira edição foi registrada no documentário ”Recomeços: Sobre Mulheres, Refúgio e Trabalho”.
Empreendedorismo como a chave para a inclusão
“O setor privado precisa olhar para estas mulheres não como vítimas, mas como pessoas que podem contribuir para o crescimento das empresas com seu talento, sonhos, tradições e riqueza cultural”, diz Isabel Marquez, da Acnur.
Por isso, o projeto envolveu as empresas Carrefour, Emdoc, Renner, Sodexo e Facebook com o propósito de treiná-las para assumirem posições em suas estruturas.
Além da inclusão no mercado de trabalho, a formação da capacidade de empreender é fundamental para que as refugiadas possam produzir renda. “O empreendedorismo é uma alternativa para as mulheres refugiadas e uma excelente oportunidade para as empresas em formação comprometidas com esta causa, pois elas também ganham com suas habilidades”, explica Adriana Carvalho, gerente dos Princípios de Empoderamento das Mulheres da ONU Mulheres.
Duas mulheres sírias seguiram o caminho do empreendedorismo – e ambas no segmento da gastronomia. Salsabil Matooq, 32, divide seu tempo entre cuidar da casa e dos filhos, e cozinhar receitas árabes para seu “Cozinha de Salsabil”. Razan Suliman, 29, por sua vez, cozinha e administra o “Razan Comida Árabe”.
“[Onde eu vivia], não podia sair de casa, não podia ficar com meu dinheiro. Aqui, eu trabalho e posso. Eu posso tudo, me sinto livre”, diz Suliman.
Cozinhar é uma das alternativas mais comuns para empreendedoras mulheres. De acordo com um levantamento realizado pelo Sebrae, alimentação é um dos quatro setores mais procurados por empresárias mulheres para começar um negócio, ao lado de serviços de estética, comércio de cosméticos e serviços domésticos. No caso de mulheres refugiadas, o mercado é ainda mais interessante. Em São Paulo, cidade onde o “Empoderando Refugiadas” foi realizado, há grande demanda por diversidade culinária.
Se Salsabil e Razan encontram um público já cativo de comida árabe, Lara só pensou em investir neste segmento depois de ouvir muita gente perguntar sobre os pratos mais típicos de Moçambique.
Logo depois de sua participação no projeto, a moçambicana passou alguns meses empregada com carteira assinada, mas logo voltou a trabalhar de forma autônoma em dois projetos. Um deles é de comida típica de seu país de origem: Lara dá treinamento e cozinha sob medida para pessoas interessadas nos sabores moçambicanos.
Sua outra fonte de renda são as palestras que dá sobre homossexualidade na África e a vida de refugiada. “No meu país não conseguia um bom emprego, homossexuais não têm mercado de trabalho aberto lá”, recorda. “Muitos refugiados saem [de casa] com a roupa do corpo. Temos formação, mas [quando chegamos] aqui, é preciso se submeter a trabalhar em funções que não têm nada a ver [com o que estudamos]. É preciso entender a transição de um país para o outro”, conclui.
Emprego e estudo mudam a vida de jovens africanas
A gastronomia também transformou a história da angolana Aicha Messa, 20. No caso desta jovem, seu talento está do outro lado do balcão: foi contratada como garçonete do badalado restaurante Arturito, da chef-estrela Paola Carosella, uma das juradas do programa de TV MasterChef. Para Aicha, a vida no Brasil apresentou um novo horizonte, no qual, como mulher, há a perspectiva de construir uma carreira. “No Brasil, a mulher se sente independente e quando alguém é independente, é feliz”, afirma Paola no documentário “Recomeços”.
“Esse intercâmbio de cores, música, sabores, culturas e estética enriqueceram tanto cidades como Nova York e Londres”, diz Paola. “Não fiz beneficência, contratei uma pessoa que tem talento para um trabalho e que, por acaso, é negra, mulher e refugiada. E eu banco as diferenças. Eu sou diferente. Todo mundo é diferente”, conclui.
A mais jovem integrante da família Zelesa, Lúcia, também conseguiu um emprego formal após a participação no projeto da ONU. Contratada para trabalhar como atendente em uma loja da Camicado, especializada em casa e decoração, ela completa um ano de carteira assinada em agosto de 2018. “Quando comecei, não sabia se ia conseguir emprego. Passei a ir às palestras e acreditar que os refugiados têm possibilidade de trabalhar no Brasil e que as empresas nos aceitam”, conta.
Lúcia lembra que aportou no país com sua família quando ainda era menor de idade e enfrentou o primeiro obstáculo: a língua. “Chegamos aqui pequenos e com a esperança de uma vida melhor. Achávamos que era o paraíso, mas a realidade foi mais complicada”, afirma. “Era difícil para se expressar, mas o povo brasileiro nos recebeu muito bem. Agora estou independente e este é o começo de uma vida nova”, diz.
No Brasil, ela se formou em um curso universitário de Recursos Humanos e, no segundo semestre de 2018, começa uma pós-graduação em Psicologia Organizacional. “Minha vida é aqui, o Brasil é minha segunda família”, conclui.
Números globais de refugiados
De acordo com o mais recente relatório anual Tendências Globais 2017 (UNHCR – Global Trends 2017), divulgado pela Acnur, hoje, em todo o planeta, existem 68,5 milhões de pessoas que foram obrigadas a deixar seus países de origem por diferentes tipos de conflito – isso representa 1 em cada 110 cidadãos de todo mundo.
O mesmo relatório revela que 2017 foi um ano recorde de deslocamentos: 16,2 milhões de pessoas tiveram que mudar de lar, o que equivale a 44,5 mil pessoas em trânsito todos os dias, sendo que 85% deles se movimentaram entre países em desenvolvimento, e não para nações ricas da Europa ou América do Norte. Do total, 55% dos refugiados têm origem na Síria (5,5 milhões), Afeganistão (2,5 milhões) e Sudão do Sul (1,4 milhões) – e a maioria procura asilo em regiões próximas. Já os países que mais recebem refugiados são a Turquia (2,9 milhões), o Paquistão (1,4 milhões) e o Líbano (1 milhão).
Outro dado impactante do documento da Acnur é o que revela a faixa etária dos refugiados: 53% são crianças, incluindo muitas que de deslocam desacompanhadas ou separadas de suas famílias. “Estamos em uma fase decisiva na qual o sucesso em gerenciar o deslocamento forçado global exige uma abordagem nova e muito mais abrangente para que os países e as comunidades não lidem sozinhos com esse tema”, disse Filippo Grandi, alto-comissário das Nações Unidas para Refugiados, em documento oficial da organização.
“Mas há razão para esperança. Faço um apelo aos países-membros da ONU para que, por favor, apoiem essa causa. Ninguém se torna refugiado por opção. Mas nós podemos escolher como ajudar”, diz Grandi.