
O jovem da zona oeste do Rio de Janeiro passava 4 horas no ônibus para ir à faculdade, onde se formou doutor. Hoje, luta pelos direitos humanos em um projeto das Nações Unidas
Me sinto impactado pelas histórias de jovens que morrem e não aparecem no jornal. Só se dá destaque para aqueles que eram provados como “inocentes”, mas no dia a dia são mortos muito mais jovens. O direito à vida é universal, não importa quem você é e o que está fazendo. Eu gosto e tenho o sonho de trabalhar com a perspectiva de igualdade como pressuposto. Acredito em fazer e considerar o outro com a mesma capacidade que a minha. Não existe uma igualdade completa, mas temos que pensar o que podemos construir de forma coletiva quando entendemos que todos têm o mesmo acesso à realidade.
Thiago Ansel, 34 anos, nasceu e cresceu em Taquara, bairro da zona oeste fluminense onde vive até hoje. Quando começou a cursar a faculdade de Comunicação Social em Jornalismo, chegava a ficar mais de 4 horas diárias dentro de um ônibus para se deslocar pelo Rio de Janeiro. O que podia ser uma desvantagem competitiva se tornou um diferencial favorável. “Eu tentei fazer disso um benefício. Eu leio muito e quando você tem tanto tempo dentro de um ônibus consegue ler e estudar. Foi o que eu fiz”, recorda. Ele diz ter criado até uma técnica para seguir lendo e fazendo anotações quando não conseguia um lugar para se sentar no coletivo.
Entrar na faculdade foi uma revolução na vida de Ansel. Jovem de classe média baixa, ele trabalhou como balconista e motorista de van em uma linha cujo destino final era Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro, para custear seus estudos. Tanto esforço não impediu que ele e sua mãe tivessem que tomar empréstimos para arcar com os boletos do curso. Se endividou, mas valeu a pena. Sua monografia de conclusão de curso sobre a representação das favelas na mídia foi tão bem avaliada que uma professora chegou a questionar se ele não havia comprado o trabalho.
Foi um ponto de mudança em sua vida. Pouco depois da aprovação, sua orientadora o procurou com uma proposta de emprego. Seria uma vaga de estágio, cujo salário pagava menos do que o trabalho nas vans de Bonsucesso, mas Thiago topou mesmo assim. “Eu não teria outra chance de entrar na área e já achava uma loucura ter feito Comunicação Social”, lembra Ansel. Foi assim que ele ingressou no terceiro setor, primeiro na organização não governamental (ONG) Criola, de promoção dos direitos das mulheres negras. Depois, ainda passaria pelo Observatório de Favelas e pelo Koinonia, organização dedicada ao apoio de comunidades tradicionais.
A trajetória de Thiago foi ocasional, mas reflete os valores que ele defende: a necessidade de um olhar cuidadoso para o jovem negro de periferia. Nesta área, ele se formou mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – trabalhava em suas teses após o expediente, no escritório, e em casa, sob um teto de zinco e um calor digno da capital carioca. Agora, o morador de Taquara é consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) e coordena o projeto Vidas Negras Pelo Fim da Violência Contra a Juventude Negra no Brasil.
O trabalho em prol dos direitos humanos
O projeto no qual Thiago está envolvido abarca as 26 agências do sistema ONU e dialoga também com gestores públicos pelo Brasil. “A campanha tem um discurso importante de que é preciso priorizar a juventude negra. Os defensores dos direitos humanos estão habilitados para falar que a ONU reconheceu que o racismo é questão importante na dinâmica de letalidade [de jovens negros]”, explica.
Para Thiago, esse tipo de ação tem ainda mais importância em um momento difícil do país, como o atual. “A sociedade brasileira está vivendo um momento de adesão a condutas e opiniões conservadoras, que são nocivas em relação à sexualidade, gênero e violência”, analisa. No bairro onde vive e entre seu círculo de amigos, seu trabalho em defesa dos direitos humanos é questionado. “Alguns provocam, dizem que defendo bandido, mas como me conhecem e crescemos juntos, existem condições para o debate, para a pluralidade de pontos de vista”.
A dificuldade de comunicação da sociedade é algo que liga o sinal de alerta de Ansel. Ele observa que, em muitos ambientes, não é sequer possível dialogar sobre temas relacionados à segurança pública, liberdade de gênero e de sexualidade, por exemplo. “Às vezes, percebo que as pessoas só querem ser ouvidas, mas não aceitam ouvir as diferenças”, explica. Até por isso, evita o uso de redes sociais para debates com fins políticos.
Para Thiago, aceitar o outro e sua compreensão de mundo é fundamental para construir um futuro melhor. “É preciso refutar o clamor radical conservador, mas também entender de onde ele vem e para onde ele vai. É necessário superar a compreensão universalista de que todo mundo vê a mesma coisa. É preciso diálogo”, conclui.
Agora, além de cumprir com seus sonhos de uma sociedade mais justa, Thiago tem mais um motivo para lutar por suas crenças: sua filha Joana, de três anos. “Ela nasceu no meio da coisa toda, durante o doutorado. Para o futuro dela, quero que tenha acesso a ambientes mais diversos o possível e que conviva sempre com valores morais, sensos estéticos e pessoas diferentes”, afirma.
Conteúdo publicado em 4 de julho de 2018