
Mestre em Educação pela UFRJ, Shyrlei trabalha para mobilizar os moradores no Complexo da Maré para acreditarem em si mesmos e transformarem a realidade
Essa é uma característica da cultura brasileira: fomos educados por todas as instituições, sejam elas família, igreja ou escola, a acreditar que não somos capazes de mudar a realidade – que é impossível. E isso é ótimo para manter o cenário que temos. O sujeito pensa que todo mundo é [incapaz] igual a ele, que seu voto não muda nada e vai se individualizando cada vez mais. Assim, o jovem se sente incapaz e incompetente, e muitas vezes desiste de objetivos, como entrar em uma universidade. Nós precisamos criar ações e movimentos para provar que é possível, sim [mudar a realidade]! A gente está aqui para provocar e gerar mudança, a partir da mobilização, e mostrar que há potencial nessas vidas. Eu sou utópica e acredito que outro tipo de sociedade é possível.
Moradora do Complexo da Maré, que reúne 16 favelas na zona norte do Rio de Janeiro, Shyrlei Rosendo cresceu tendo como paisagem a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela nunca soube, porém, que aquele grande prédio era uma universidade. Muito menos que, se ela quisesse e se esforçasse, podia, um dia, estudar ali. Para ela, o campus da Cidade Universitária era um local apenas de lazer, onde ela podia praticar esportes ao ar livre. “Meus pais não fizeram faculdade e, na escola, nenhum professor me disse que eu poderia estar lá um dia”, recorda.
Shyrlei contemplou, pela primeira vez, a ideia de ingressar um curso universitário graças a um projeto comunitário e autônomo. Esse projeto deu origem à organização Redes da Maré, da qual Shyrlei hoje faz parte, e que começou em 1997 como uma iniciativa de moradores e ex-moradores das favelas que formam o complexo. Muitos desses primeiros membros da Redes compunham o 0,5% de jovens de periferia que conseguiu entrar em uma universidade pública. Não à toa, a primeira iniciativa da Redes foi abrir o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré. Ao longo de mais de 20 anos, mais de 1,2 mil jovens entraram em uma universidade por meio do curso pré-vestibular.
Shyrlei faz parte desta estatística – duas vezes.
Aos 18 anos, começou a estudar no cursinho da Redes e logo passou no curso de moda em uma faculdade particular. Quando as aulas começaram, ela não demorou para perceber que não era bem aquilo que ela queria. “Foi um desastre. Pensava sempre ‘o que estou fazendo aqui?’”, conta. “Fiz um ano e meio e larguei”.
Enquanto cursou, porém, Shyrlei teve que se desdobrar para pagar as mensalidades. E um dos empregos que arrumou foi em um programa da Redes que funcionava dentro das escolas do complexo. Aos poucos, e de forma inesperada, ela encontrou ali a motivação e inspiração que procurava. “Me incomodava como os educadores lidavam com os alunos e moradores. Eles não viam aquelas pessoas como sujeitos com potencial, como pessoas que poderiam ser protagonistas de suas próprias transformações”, lembra. Foi assim que ela decidiu redirecionar seus esforços e construir sua trajetória na educação.
Shyrlei voltou ao curso pré-vestibular da Redes e foi aprovada em Pedagogia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde concluiu sua graduação. Anos depois, finalmente entrou na UFRJ como aluna e lá se formou mestre em Educação. “Estudei educação para pensar em políticas públicas educacionais em territórios de favela. Quero compreender e resolver esse nó – e uma das formas que vejo é que quando o professor vem de lá, ele se torna uma inspiração para o aluno”, explica.
Ação social para transformar a realidade
Hoje, aos 34 anos, Shyrlei completou mais de uma década de envolvimento com a Redes da Maré. Há um ano e meio, sua função na organização é de coordenar o eixo de mobilização em segurança pública. “Este era o último lugar que gostaria de estar: segurança pública. A gente que vive nas comunidades tem muito medo, há muita tensão porque estamos em território ocupado por grupos civis armados”, diz.
O cenário atual, com a ocupação do Complexo da Maré, torna a ação da organização ainda mais difícil – e ao mesmo tempo mais necessária. “Segurança pública é um direito tal como saúde, educação e saneamento básico”, diz. “E essa ideia de segurança pública com operação policial na favela e política contra drogas é uma mentira. Não tem plantação de droga ou fábrica de armas na Maré. O Estado precisa ser mais inteligente em suas ações”, diz.
O alto número de mortes violentas – em 2016, foram 42 vidas perdidas apenas na Maré – e a invisibilidade dessas histórias de violência são problemas importantes para Shyrlei. A indignação diante deste quadro exige mobilização. “Não queremos ocupar o papel do Estado. Nosso papel é criar ações exemplares e mobilizar os moradores para que eles possam ser protagonistas das mudanças”, explica. “O cidadão não tem que ir lá misturar o cimento para pavimentar a rua, mas usar o conhecimento e a ação coletiva para demandar isso do Estado”, afirma.
Ainda que com muitos percalços, a estratégia vem dando certo. A partir do fórum “A Maré que Queremos”, por exemplo, 16 associações de moradores se reúnem mensalmente para pensar soluções de planejamento urbano. Em 2009, uma ação coletiva conseguiu da Prefeitura do Rio de Janeiro a instalação de 28 equipamentos educativos no complexo.
“Não choro na frente dos outros, mas comigo mesma eu me emociono. E penso que a luta vale a pena”, afirma.
Conteúdo publicado em 6 de julho de 2018