Com formação em psicologia, neurociência e filosofia, Joshua Greene é uma das maiores autoridades mundiais no estudo da moral humana. Ele, inclusive, é o diretor do “Moral Cognition Lab” (“Laboratório de Cognição Moral”, em tradução livre) da Universidade Harvard, onde é também professor – o departamento, hoje, é conhecido como Greene Lab.
Ele é autor no livro “Tribos Morais” (Record, 2018), no qual apresenta e desenvolve a noção da moral como uma ferramenta da evolução biológica da humanidade: inscrita em nossos genes e em nossas relações sociais, foi fundamental para garantir a sobrevivência da espécie. Por isso, o ser humano desenvolveu alta capacidade de cooperação, mas com um porém: tal cooperação é mais forte entre elementos da mesma tribo e, hoje, vivemos em um ambiente de convivência global.
Após passagem pelo Brasil, onde palestrou no ciclo de eventos Fronteiras do Pensamento, Joshua Greene falou ao bluevision sobre sua concepção de moral e como ela orienta nossas ações nas relações humanas, na política e, sobretudo, na construção do desenvolvimento sustentável. “Não há projeto moral se nós estivermos mortos. Então, precisamos entender como viver de modo a nos manter vivos”, afirmou a respeito da questões de sustentabilidade.
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Qual é a definição precisa de moral ou moralidade, aquela com a qual você trabalha, tanto do ponto de vista filosófico como científico?
Joshua Greene: Não acho que “moralidade” tenha uma definição precisa, mas posso dizer o que eu acredito que ela seja. Ela é um conjunto de capacidades e tendências psicológicas que permitem que indivíduos egoístas aproveitem os benefícios da cooperação. Falando de forma coloquial, a moralidade diz respeito ao trabalho em equipe – a capacidade de agir em benefício de “nós” e não em benefício de “mim”.
A moralidade é implementada principalmente com sentimentos, com gatilhos emocionais que nos motivam a nos comportar de forma a beneficiar os outros. Digamos que evitamos roubar porque temos empatia com as vítimas do roubo, porque nos sentiríamos culpados ou envergonhados por fazermos isso, porque os outros ficariam com raiva de nós se fôssemos pegos, e porque outras pessoas nos recompensariam com a sua gratidão por seguir as regras.
Além de ter sentimentos, também podemos raciocinar sobre a moralidade, por exemplo, quando reconhecemos que estaríamos todos em uma situação melhor se concordássemos em não roubar e, assim, criássemos mecanismos para impor esse comportamento mutuamente benéfico.
Tudo o que eu disse acima é uma descrição puramente científica. Eu acredito que a moralidade é uma forma de cooperação, assim como a água é H2O. Por milhares de anos as pessoas sabiam o que era a água, mas não entendiam sua essência, a estrutura que faz dela ser água, e que faz ela fazer o faz.
Por enquanto, essa compreensão da moralidade como um conjunto de dispositivos de cooperação é uma teoria científica, mas está próxima de um consenso entre os cientistas que estudam a moralidade. Em algum ponto, podemos entendê-la segundo a sua definição, assim como, hoje, definimos a água em relação a sua estrutura química, em vez de suas propriedades imediatamente observáveis.
O que significa o conceito da moralidade tribal e como ela se tornou uma vantagem da evolução humana?
Para algo evoluir (biologicamente), esse algo deve ter uma vantagem competitiva. Os leões evoluíram para serem rápidos e fortes, porque leões mais lentos foram vencidos por outros mais rápidos e fortes. E isso é verdade para todas as características que evoluem por meio da seleção natural. Então, isso significa que a moralidade pode não ter evoluído para o propósito da cooperação universal. Em outras palavras, a moralidade não foi “projetada” para tornar todos agradáveis uns aos outros. Ao contrário, a moralidade evoluiu porque o trabalho em equipe é uma ferramenta e uma arma poderosa.
Seres humanos que compartilham alimentos quando os alimentos são escassos, avisam quando os predadores se aproximam e cuidam uns dos outros quando estão doentes têm maior probabilidade de sobreviver do que humanos que nunca fazem nada um pelo outro. Assim, os humanos geralmente sobrevivem sendo cooperativos, mas apenas em um grupo limitado. E este grupo limitado é o que eu chamo de “tribo”.
Sendo assim, uma “tribo” pode ser uma tribo literal com um nome reconhecível, mas eu uso o termo metaforicamente para me referir a grupos que definem os limites da cooperação. Na vida moderna, que é complicada, as pessoas normalmente pertencem a várias tribos, como aquelas definidas pela religião e nacionalidade. As pessoas também pertencem a tribos aninhadas, como uma comunidade dentro de uma região dentro de uma nação.
Embora a moralidade tenha evoluído como uma ferramenta ou arma competitiva, não podemos ser universalmente cooperativos. Considere o caso do controle de natalidade. Como chegamos até aqui?
Nós, seres humanos, temos cérebros inteligentes que nos permitem desenvolver tecnologias complexas para nos ajudar a resolver problemas, e essa capacidade de resolução de problemas nos ajuda a sobreviver. Por exemplo, nós, diferentemente dos animais, podemos construir lanças que nos permitem caçar animais muito maiores e que podem alimentar muitas pessoas e sustentar melhor nossos descendentes.
Nossos genes “aproveitam” a oportunidade de se espalhar para a próxima geração. Além de gostar de comida, nós, humanos, gostamos de fazer sexo. Mas, hoje em dia, os seres humanos não querem ter muitos filhos. Então, inventamos o controle de natalidade, mais notadamente a pílula, que nos permite desfrutar do sexo sem ter bebês.
Do ponto de vista evolucionário, isso é um desastre: a evolução nos deu cérebros inteligentes para nos ajudar a resolver problemas complexos, para que pudéssemos reproduzir com mais eficiência – e, no caso da pílula, estamos usando nossos cérebros inteligentes e solucionadores de problemas para nos ajudar a não reproduzir. Felizmente, não precisamos aceitar a perspectiva da evolução. Podemos usar nosso controle de natalidade para viver da maneira que queremos viver, do modo que nos faz felizes, mesmo que isso nos impeça de viver de acordo com nosso potencial reprodutivo.
Da mesma forma, não temos que aceitar que essa moralidade seja tribal e com a cooperação limitada apenas aos nossos respectivos grupos, mesmo que essa seja a função para a qual a moralidade evoluiu. Se quisermos, podemos decidir viver de uma forma que maximize nosso bem-estar coletivo – ou seja, nos tornando uma grande tribo. Claro, nem todo mundo quer isso. Mas o importante é que tudo depende de nós. Não devemos presumir que estamos condenados ao tribalismo por causa de nossas origens evolucionárias.
Como você descreveria as consequências da moralidade tribal no mundo hoje? Estamos nos fechando em nossas próprias tribos e lutando contra tribos rivais, ou somos mais uma grande tribo global e cooperativa?
Numa grande escala histórica, os humanos estão se tornando cada vez mais cooperativos. Podemos ver isso, claramente, com o declínio da violência ao longo de décadas, séculos e milênios, conforme documentado por meu colega Steven Pinker em seu livro “Os anjos bons da nossa natureza” (Companhia das Letras, 2017) – e eu entendo que a maioria das pessoas tem dificuldade em acreditar que a violência diminuiu, mas é verdade. Nos últimos anos, houve um ressurgimento do tribalismo na forma de nacionalismo. Vemos isso muito claramente nas revoltas políticas nos EUA e no Brasil, e também na Europa e em outras regiões da América do Sul.
Existe uma ordem global altamente cooperativa, mas há um grande descontentamento entre as pessoas que acham que não estão se beneficiando dela. Os políticos mais experientes podem aproveitar esse descontentamento e promover seus próprios interesses, canalizando essa raiva para o ressentimento tribal. Em alguns casos, o ressentimento é justificado (por exemplo, os escândalos que assolaram a esquerda brasileira) e em outros casos não (por exemplo, a raiva pelos gays ou muçulmanos).
Você destaca como a cultura influencia a formação moral do homem. Você acha que é possível ter “moralidade global” em um mundo onde as realidades culturais e econômicas são tão heterogêneas?
De certa forma, não é apenas possível, mas já acontece. Milhares de pessoas de todo o mundo contribuíram voluntariamente para o laptop que estou usando. Essa cooperação só é possível porque temos um conjunto de padrões globais que estabelecem confiança com base no respeito mútuo. Pessoas de muitas tradições culturais, nações e religiões assinaram a agenda dos direitos humanos – embora pensamos de forma diferente sobre o que isso implica exatamente, e isso é um progresso moral muito importante. No entanto, o que não temos é uma filosofia moral única e coerente. Eu acho que isso é possível também, mas provavelmente levará muito mais tempo e conhecimento científico para chegar lá, se é que vamos fazer isso.
Onde e como a sustentabilidade se encaixa nesse projeto de moral global?
Não há projeto moral se estivermos mortos. Então, precisamos descobrir como viver de uma maneira que nos permita continuar vivendo.
Você diz que nossas decisões morais são baseadas em conjuntos de valores emocionais ou racionais. Quais desses conjuntos de valores usamos quando tomamos decisões de longo prazo (por exemplo, gastar dinheiro em reflorestamento)?
Felizmente, a maioria de nossas decisões é baseada tanto na emoção quanto no raciocínio. Nós comemos porque estamos com fome, mas também fazemos isso de forma racional. A vida se complica quando nossas inclinações emocionais e planos racionais apontam em direções opostas, por exemplo: quando estamos em uma dieta e temos vontade de comer alimentos calóricos.
Podemos ter uma forte inclinação para comer o sorvete, mas a razão que se opõe a esse ato também tem um componente emocional. Você não está motivado a fazer dieta simplesmente por pura “razão”. Você pode estar preocupado com sua saúde a longo prazo ou está pensando em como você vai ficar de biquíni. A razão nos permite conectar os valores que atribuímos a certos resultados às ações que podemos realizar agora por meio do entendimento das relações de causa e efeito: se eu comer salada de frutas em vez de sorvete, serei mais saudável e ficarei mais magro até o verão.
Ambos os tipos de decisão são de curto e longo prazo. E o que importa como uma decisão de longo prazo ou de curto prazo nem sempre é tão claro na vida real. Uma pessoa pode decidir se casar ou se juntar ao exército por um capricho. Da mesma forma, pode-se pensar muito sobre sorvete ou salada de frutas, como se todo o futuro dependesse disso.
“Não há projeto moral se estivermos mortos. Então, precisamos descobrir como viver de uma maneira que nos permita continuar vivendo.” – Joshua Greene
O que pode ser feito para convencer as empresas, os governos e as pessoas, moralmente, a investir tempo, dinheiro e energia em assuntos sustentáveis?
Essa é sempre a questão mais difícil. Podemos ver um futuro em que todos estão melhores, mas como chegaremos lá? A boa notícia, como eu disse, é que já fizemos muitos progressos, principalmente na diminuição da violência. Este é o tipo mais importante de sustentabilidade, pois nenhum outro é possível sem ele. Então, o que estamos fazendo certo?
A história sugere que as pessoas escolherão estruturas sociais mutuamente benéficas se tiverem liberdade para escolher e informações que sejam boas o suficiente para suas escolhas. Mesmo durante a Guerra Fria, com informações muito limitadas, as pessoas estavam tentando sair da Alemanha Oriental e entrar na Alemanha Ocidental, e não o contrário. Hoje, poucas pessoas estão tentando entrar na Coréia do Norte ou na Síria. Em relação às nações, as pessoas sabem muito bem o que é bom e o que não é, mas dentro das nações, em relação às escolhas políticas, a boa tomada de decisões está em risco.
Acho que agora estamos diante de uma crise de informações, mais do que uma crise de liberdade, pelo menos nos EUA e talvez no Brasil também. Por um tempo, a comunicação em massa foi altamente centralizada. E enquanto envolvia muito viés por parte dos agentes de informações, mas também tornava mais difícil que mentiras infundadas e teorias de conspiração se espalhassem.
Hoje, com a internet e as mídias sociais, as pessoas podem optar por obter informações somente das fontes que as atraem. Em vez de todos estarem sujeitos aos preconceitos de algumas pessoas, os preconceitos de todos estão livres, principalmente, mas não exclusivamente, no direito político tribalista. Políticos implacáveis, guerrilheiros culturais e organizações corporativas descobriram como acionar os gatilhos emocionais das pessoas, assustando-as e afastando-as de políticas globalmente benéficas, ou confundindo-as com a indiferença.
Acho que nosso maior desafio hoje pode ser preservar e proteger nossos espaços informativos compartilhados para que possamos usar nossa inteligência coletiva da melhor forma possível.
Conteúdo publicado em 11 de dezembro de 2018