A mais recente edição do ciclo de palestras e debates Fronteiras do Pensamento recebeu o médico congolês Denis Mukwege, cujo trabalho em prol da vida e saúde das mulheres já atendeu a mais de 85 mil pacientes e lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2018. Com mediação do jornalista João Gabriel de Lima, Mukwege relatou os desafios de seu trabalho e sua inspiração para salvar vidas. Este ano, o tema central dos eventos organizados pelo Fronteiras do Pensamento é “sentidos da vida”
Nascido na cidade de Bukavu, na República Democrática do Congo, o médico ginecologista enfrentou as mazelas da falta de serviços de saúde em sua infância – uma infecção quase o matou após o parto – antes ingressar e concluir o curso de medicina na Universidade do Burundi (Burundi); posteriormente, seguiu os estudos nas universidades de Angers (França) e Bruxelas (Bélgica). Voltou a seu país natal, onde trabalhou no Hospital de Lemera (em meio à guerra civil congolesa) e criou o Hospital de Panzi (dedicado a atender mulheres e crianças em situação de violência sexual e obstetrícia).
A dedicação à preservação da vida e da dignidade dessas mulheres e crianças rendeu diversos prêmios internacionais ao médico. Além do Nobel da Paz (recebido junto com a ativista iraquiana (Nadia Murat), foi agraciado com o Prêmio Olof Palme, a distinção de Cavaleiro da Legião da Honra, o Prêmio das Nações Unidas no Campo dos Direitos Humanos. Por outro lado, em 2012, após reiteradas ameaças, sofreu um atentado que matou um de seus colaboradores. “O sentido de minha existência é salvar vidas, e pouco importa o preço a se pagar”, disse no palco do Teatro Santander.
“Pai, vou ser médico e salvar vidas”
Graças a ação de uma ativista sueca que vivia no Congo, Mukwege sobreviveu às complicações de seu nascimento. “Um erro no corte do cordão umbilical me abriu para uma infecção generalizada”, contou em sua fala. “A Sra. Bergman abandonou seu país para ir ao Congo lutar por nossas vidas. Por causa dela, hoje, sou um sobrevivente”.
Outra inspiração do médico foi seu pai, um reverendo. Ele narrou que o acompanhava com frequência em seu trabalho na comunidade quando tinha em torno de 8 anos de idade. “Um dia, ele foi chamado para ver uma criança muito doente. Rezou pela sua saúde e devolveu à família”, relatou. “Meu pai disse que não poderia fazer mais nada, afinal não era médico. Disse para ele, ingenuamente: pai, vou ser médico e salvar vidas”.
A indignação com a alta mortalidade infantil em seu país motivou Mukwege a dedicar todos seus esforços para garantir partos mais seguros para mães e bebês. “Que paixão e que alegria ver os resultados desse esforço. Mas depois veio a frustração”, recordou. No Hospital de Lemera, em uma região rural, salvou muitas vidas – chegou a realizar 18 cirurgias por dia. No entanto, em 1998, explodiu a Segunda Guerra do Congo e foi obrigado a encerrar seu trabalho – a guerra dizimou cerca de 6 milhões de pessoas. No ano seguinte, de volta a Bukavu, fundou o Hospital de Panzi.
“A justiça das mulheres é a justiça da humanidade”
Mukwege lembra que sua primeira paciente em Panzi não chegou para dar à luz, mas para receber tratamento médico após um estupro extremamente violento. “Pensei que este caso com ferimentos tão graves era isolado. Infelizmente, eu estava errado”, contou. O médico descobriu então que o estupro violento é usado na guerra civil como um método de guerra para destruir comunidades: trata-se de um sádico e cruel modo operatório de torturas físicas e psicológicas que envolvem a humilhação pública e o risco de contaminação com o vírus HIV.
“A lembrança mais terrível que tenho é de uma noite na qual mais de 200 mulheres foram violentadas em frente a suas famílias, de forma sistemática”, resigna-se. “O que fazer com essa violência? Não há outra forma que não seja responder com amor e assistência médica, psicológica e econômica. Temos que estimular a liderança e autonomia das mulheres e transformar esse sofrimento em força para serem atrizes plenas da sociedade”.
O Nobel da Paz advoga que equidade de gênero deve ser palavra de ordem não só no Congo como em todo o mundo. Esses bárbaros crimes são cometidos em todo o planeta e, por isso, Mukwege defende a inauguração de um fundo global para vítimas de crimes sexuais. “As mulheres não podem continuar sua luta sozinhas. Nós, homens, temos que arregaçar as mangas e lutar junto”.
O médico conclui que o modelo de sociedade patriarcal precisa acabar para haver um mundo melhor e mais justo e que os homens do mundo precisam urgentemente combater qualquer tipo de noção de superioridade de gênero. “A justiça das mulheres é a justiça da humanidade, é o que precisamos para curar um mundo ferido”, disse. “São escolhas que salvarão nossas próprias vidas amanhã: a escolha da masculinidade positiva e da igualdade de gênero.”
Conteúdo publicado em 28 de agosto de 2019