A escritora e crítica de arte francesa Catherine Millet foi a protagonista da mais recente edição do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento, realizada em São Paulo. Com mediação da jornalista e professora Isabelle Anchieta, Millet apresentou a palestra “As ideias antiquadas do #MeToo”, que abordou temas como democracia, assédio, feminismo e liberdade de expressão.
Neste ano, os eventos promovidos pelo Fronteiras do Pensamento têm como tema central: “Mundo em desacordo, democracia e guerras culturais”.
Catherine Millet tem 70 anos e é fundadora da publicação Art Press, uma das principais referências da crítica de arte na França desde 1972, além de autora dos livros “A vida sexual de Catherine M.” (Ediouro, 2001), e “A outra vida de Catherine M.” (Ed. Agir, 2009) – suas publicações venderam mais de 2,5 milhões de exemplares em 45 países.
Em janeiro de 2018, ela foi uma das cinco mulheres que assinaram o texto-manifesto, publicado no jornal francês “Le Monde”, contra o movimento #MeToo, iniciado em Hollywood para denunciar casos de assédio e violência de gênero. A crítica de arte defende que o homem tenha o “direito de importunar” no ato da sedução e afirmou, no palco do Fronteiras, que “perdoa homens com comportamentos inadequados porque são resultado de um impulso primitivo incontrolável, que vem do inconsciente e que não entendemos”.
“Às vezes, vem com uma força que destrói aquilo que nós somos”, disse Millet.
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Para Millet, #MeToo é movimento violento e autoritário
O principal argumento de Millet contra o movimento #MeToo é o de que ele tem um caráter de autoritarismo e até de violência contra os homens. Na palestra, ela citou o episódio do coreógrafo Daniel Dobbels, seu amigo pessoal. O jornal francês “Libération” publicou uma série de denúncias de bailarinas que o acusavam de assédio e rapidamente o teatro no qual ele exibia um espetáculo cancelou a temporada de apresentações e a universidade na qual dava aulas foi pressionada a demiti-lo. Millet conta que Dobbels se aposentou da arte e da docência e entrou em depressão; pouco depois as denúncias contra ele foram retiradas.
“Há um problema de superexposição midiática do tema. Os jornais ficam satisfeitos em meramente replicar o que veem nas redes sociais e não fazem suas próprias investigações. Mostram muitas acusações e poucas defesas”, disse Millet. Para ela, esse fenômeno de mídia dá a impressão de que eventos de assédio são mais comuns do que realmente são.
Em sua fala, Millet citou a filósofa e feminista francesa Elizabeth Badinter, autora do livro “Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos” (Ed. Civilização Brasileira, 2005), para distinguir os tipos de danos gerados pelo comportamento masculino. Ela defende que alguns casos, como a ofensa verbal e alguns graus de assédio, devem ser categorizados de forma diferente das “violências físicas reais” sofridas pelas mulheres. “A palavra tem uso pelos dois sexos. Onde começa o insulto? Qual o limite do objetivo e do subjetivo? É impossível julgar o impacto de uma ofensa”, afirmou.
“É difícil chegar à ‘verdade’. Mesmo juristas e advogados militantes reconhecem que é difícil legislar e julgar casos de assédio ou violência, geralmente não há provas e vira uma situação de palavra versus palavra”, diz Millet. Para ela, nem esta situação deve ser suficiente para que o feminismo desista da Justiça ou deixe de confiar no Estado Democrático de Direito.
Segundo Millet, levar a acusação para a praça pública, e não às esferas corretas da Justiça, e transformar o episódio em um caso de linchamento simbólico, com consequências à vida privada e profissional dos acusados, é um ato que deve ser condenado. A origem deste comportamento, acredita a crítica de arte, é o desejo utópico do movimento feminista de construir um novo homem. “Elas querem isso a partir de critérios convenientes a elas. Querem homens que nunca cedem aos impulsos”, disse. “Mas a energia libidinosa deles quebra fronteiras, faz parte do erotismo. Acho que as feministas são ignorantes sobre a sexualidade freudiana”, afirmou Millet.
“Feministamente correto” é nova censura para Millet
Um conceito bastante difundido pelo feminismo é questionado pela crítica de arte francesa. Ela afirma rejeitar completamente a ideia de sororidade entre mulheres. “Sororidade é a liberação da voz das mulheres, mas quando nosso artigo diz algo diferente, outras mulheres querem nos calar. Elas me olham como se eu fosse uma infiel”, falou.
Trata-se de uma censura ou, pior, uma autocensura imposta pelo “feministamente correto”, de acordo com Millet. Para exemplificar, ela cita um artigo que orienta a parar de ler “A Bela Adormecida” para as crianças sob a alegação de que o príncipe beija a princesa sem sua autorização. “Para mim, é um retrocesso ao passado ligar a arte à moral. É uma situação típica de uma sociedade totalitária”, afirmou.
Ao fim da apresentação, ela foi questionada pela plateia sobre as consequências reais da cultura de violência contra a mulher – no Brasil, há um estupro a cada 11 minutos e 946 mulheres foram assassinadas em casos de feminicídio apenas em 2017. “É difícil julgar a situação porque falo desses assuntos apenas a partir de coisas que eu leio e da minha experiência pessoal, não sou cientista política ou socióloga”, disse. “Mas são casos difíceis para a Justiça encontrar a verdade”, concluiu.
Conteúdo publicado em 9 de julho de 2018