A jornalista e escritora franco-marroquina discute os conceitos de identidade e pertencimento e define a arte como o lugar universal de toda a comunidade humana

Na mais recente edição do ciclo de palestras e debates Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, a escritora e jornalista franco-marroquina Leïla Slimani apresentou sua compreensão sobre o conceito de identidade. O jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto mediou a apresentação.

Neste ano, os eventos promovidos pelo Fronteiras do Pensamento têm como tema central: mundo em desacordo, democracia e guerras culturais. A palestra da escritora, intitulada “Quem sou eu? Identidade e cultura”, trouxe sua própria história de vida como ponto de partida para explorar os limites daquilo que entende como identidade.

Nascida em Rabat, capital do Marrocos, Leïla foi educada em francês e migrou para Paris com 18 anos, onde fez faculdade e deu início a sua carreira profissional. Como jornalista, ela cobriu as revoluções da Primavera Árabe, no Egito e na Tunísia. Como escritora, publicou o premiado Dans le Jardin de l’Ogre e o sucesso Canção de ninar, que vendeu mais de 600 mil exemplares em 36 países. Hoje, atua como embaixadora da língua francesa, cargo concedido pelo presidente da França, Emmanuel Macron.

Sentir-se estrangeira em sua própria terra e, ao mesmo tempo, identificada com duas culturas distintas é o que motivou a reflexão de Slimani sobre o que é identidade e pertencimento. “Sou mais francesa ou mais marroquina? A realidade é mais complexa do que isso. Eu não sei quem sou e não me interessa as pessoas pelo que elas são, mas pelo que fazem e pelo que elas lutam”, disse a escritora. “Não há identidade única e eterna – e essa ideia é perigosa. Precisamos aceitar que identidade é permanência”, reforçou.

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Vida entre Marrocos e França

Toda ascendência de Leïla é marroquina. Em sua fala, ela contou a trajetória de seu pai, filho de comerciantes que se tornou aluno pródigo e estudou em institutos franceses, mesmo dentro do Marrocos. Sua formação ocidentalizada resultou no reconhecimento e na crença de valores europeus e iluministas. “Ele foi educado pelo poder dominante colonial e sofreu com o sentimento de se ver como estrangeiro, ou mesmo de se sentir traidor”, lembrou a jornalista.

Houve uma ruptura identitária com a tradição, via educação, analisa a escritora. E esta ruptura influenciou muito sua própria formação. A educação dos pais formou uma família que não absorveu qualquer doutrinação religiosa ou sentimento patriótico. “Na época, isso me fazia sofrer, queria me sentir parte daquela comunidade. Quando era adolescente, me achava também traidora”, disse. “Sentia que meus pais não me deram raiz. Mas, na verdade, eles deram condições para a liberdade”.

Os resultados dessa educação livre de tradições e dogmas religiosos foram mais nítidos com sua mudança à França. “Me tornei mais francesa do que eu pensei. Me casei com um francês, meu filho tem nome francês e nem me dei conta de que cada vez mais me integrei”, narra. O processo de integração ao novo país não foi exatamente fácil. Slimani recordou ofensas que já ouviu – foi chamada de “gentinha” e “ralé” nas ruas de Paris – mas acredita que o fato de falar francês com sotaque parisiense e ter nível educacional alto “tornaram minha pele menos escura”, ou seja, foram determinantes para que não sofresse tanto com injurias raciais.

“E se eu tivesse sotaque? Será que eu traí os meus iguais? Aliás, quem são meus iguais? Às vezes sentia raiva de mim por que seria ser como eles [marroquinos] e não como os outros [franceses]”, desabafou Leïla. Quando teve a chance de voltar a seu país, trabalhando como jornalista, viveu num novo conflito. “Fui fazer reportagens em vilarejos, queria me encontrar com meu passado, queria a chance de ser amada pelos meus conterrâneos. Viajei o país e ouvi as histórias, mas a distância entre nós nunca desapareceu”.

“A literatura pode tudo”

“Um amigo me disse que ‘sou a árabe que eles gostam’ por ser marroquina, muçulmana e ter escrito um livro sobre sexo. Eu sou a árabe que não choca, aquela que mostra que a integração é possível sob a perspectiva deles”, lembrou Leïla. “Me senti mal, como se já tivesse escolhido um lado”, concluiu.

Para ela, a literatura não exige a necessidade de escolher lado. “A literatura é a liberdade absoluta, onde podemos falar de tudo e fazer de tudo”, conclui. Embora seus trabalhos tenham inspiração no mundo real – seu Dans le Jardin de l’Ogre é inspirado em um escândalo sexual e o Canção de ninar, em um assassinato de duas crianças – ela acredita que é na liberdade criativa do escritor que podemos compartilhar nossas semelhanças como humanos, independentemente de raça, gênero ou cultura.

Fã de autores como Albert Camus e o brasileiro Jorge Amado, Slimani diz que é na literatura “que podemos desfazer nossa identidade e preconceitos”. Ela rejeita a necessidade de assumir em suas obras posições políticas ou dar mensagens daquilo que ela acredita. “Escrevo para criar perguntas, eu não tenho respostas. É só uma forma de abrir os olhos, afinal eu não sei nada. Eu apenas conto histórias”, resume.

“É na arte que nos lembramos de nosso pertencimento à maior identidade que temos, que é a da grande comunidade humana”, conclui a escritora.

Conteúdo publicado em 21 de junho de 2018

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