No Brasil e em todo mundo, entre 70% e 80% dos alimentos é produzido em pequenas propriedades rurais. Entenda como o microcrédito e a produção orgânica fazem da agricultura familiar um modelo de economia sustentável

Pouco mais de 90% das 570 milhões de propriedades agrícolas mundiais são geridas por famílias, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Essas propriedades são responsáveis por 75% de todos os recursos agrícolas globais. Isso representa 80% dos alimentos no mundo inteiro e também significa que as estratégias de desenvolvimento sustentável ambiental, social e econômico passam, necessariamente, por este setor produtivo.

Para a ONU, a agricultura familiar é um passaporte para erradicar a fome mundial e alcançar a segurança alimentar sustentável. Em 2014, no lançamento do relatório Estado da Alimentação e Agricultura, o então secretário-geral da entidade, Ban Ki-moon, reforçou a importância dos agricultores familiares para o desenvolvimento sustentável.  “Eles gerenciam a grande maioria das propriedades agrícolas do mundo. Eles preservam recursos naturais e a agrobiodiversidade. Eles são o pilar dos sistemas de agricultura e de alimentação inclusivos e sustentáveis”, disse.

No Brasil, não é diferente. De cada dez alimentos que abastecem a mesa dos brasileiros, sete vêm de propriedades pequenas, cujas produções modestas são da responsabilidade direta das famílias que tocam a roça. É das mãos de pessoas como Maria de Lourdes Bispo e Zundi Murakami, agricultores da zona rural de São Paulo, que se produz parte significativa da comida consumida no país, caso da mandioca (87%), do feijão (70%), da carne suína (59%), do leite (58%), da carne de aves (50%), do milho (46%), entre outros – e pela lei brasileira, 30% de toda merenda escolar vêm da produção familiar.

Leia também:
Canudo gigante revoluciona agricultura na Índia
Reciclando alimentos: ações recuperam comida que iria para o lixo
Por quais embalagens passa sua comida até chegar à mesa?

Maria Lourdes Bispo e Regiane Bispo. Crédito: Luiz Felipe Silva

Maria de Lourdes Bispo, e a filha Regiane Bispo, e Zundi Murakami (na foto do destaque da matéria) são agricultores familiares do extremo sul de São Paulo

O Brasil é elogiado pela FAO nesse quesito. No país, a agricultura familiar ocupa 84% das propriedades rurais, emprega cerca de 5 milhões de famílias e gera faturamento anual na casa dos US$ 55 bilhões. Em termos comparativos: a produção agrícola brasileira é a quinta mais forte do planeta, cujo resultado em 2017 foi de US$ 84,6 bilhões em faturamento. Se considerado apenas o que foi produzido de forma familiar, o país ocuparia a oitava posição, ainda à frente de nações como Rússia e Turquia.

“O crescimento do Brasil passa pela agricultura familiar. O agricultor familiar tem grande importância para o crescimento do Brasil”, afirmou em nota Jefferson Coriteac, secretário da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário. De acordo com o último Censo Agropecuário, este modelo de agricultura é a base da economia de 90% dos municípios brasileiros de até 20 mil habitantes. “E pelo novo censo agropecuário que está sendo feito, a tendência é esse número crescer cada vez mais, principalmente com a procura por produtos agroecológicos”, completa Coriteac.

Agricultura familiar: o que é e por que é tão importante?

A definição legal de agricultura familiar, conforme a Lei nº 11.326/2006, é a atividade no meio rural, em uma área de até quatro módulos fiscais (medida agrária que varia de município a município), com mão de obra da própria família e renda vinculada ao próprio estabelecimento e gerenciamento do estabelecimento. Os produtores contemplados por esta classificação, além de agricultores tradicionais, são silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores, indígenas, quilombola e assentados da reforma agrária.

Para a FAO, a agricultura familiar corresponde a todas atividades agrícola, florestal, pesqueira, pastoril e aquícola que são geridas por uma família e que depende da mão de obra familiar. A entidade destaca que esta é a forma predominante de produção de alimentos.

O representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, reforça que a agricultura familiar é um setor-chave para garantir segurança alimentar especialmente na América Latina. Em artigo, ele explica que se trata também uma atividade com potencial de diminuir a pobreza, que é mais extrema em áreas rurais – aproximadamente um terço da população latina que vive no campo e em extrema pobreza – índice quatro vezes maior que nas áreas urbanas.

“Na agricultura familiar, o local de trabalho é a mesma propriedade onde o produtor mora e, por isso, ele tem muito mais cuidado com a terra, pois depende dela por muito tempo”, conta Arpad Spalding, consultor de agricultura familiar do projeto Ligue os Pontos, da Prefeitura de São Paulo. “Nas grandes propriedades, a relação com o solo é menos afetivo e mais mercantilista e quando a terra se esgota, ocupam novas áreas – e isso acontece historicamente no Brasil”, analisa.

Feira de produtos orgânicos da Rua Curitiba. Crédito: Luiz Felipe Silva

A feira de produtos orgânicos da Rua Curitiba (São Paulo), aberta aos sábados, é um dos locais onde produtores familiares vendem seus alimentos

Esta relação mais cuidadosa e emocional com a terra tem como consequência uma série de impactos positivos para o meio-ambiente, como a garantia de água de melhor qualidade no lençol freático, melhor cobertura do solo e prevenção do assoreamento dos rios. Em áreas urbanas, a agricultura familiar ainda forma cinturões de proteção contra o avanço do desmatamento e crescimento desordenado das cidades.

“No entanto, o setor enfrenta limitações significativas em aspectos relacionados ao acesso a recursos produtivos, serviços sociais, infraestrutura básica, serviços rurais, financiamento e extensão agrícola”, afirmou Bojanic em artigo. Sua avaliação indica a necessidade de investimentos para potencializar o setor, como promover acesso às novidades tecnológicas e oferecer consultoria e ensino de modelos de gestão de negócio, além, claro, de melhor estrutura de distribuição e recursos financeiros via crédito.

Microcrédito: como funciona o sistema de financiamento?

Organizações sindicais de trabalhadores rurais se mobilizaram durante décadas para que a política agrícola apresentasse alternativas de financiamento acessível aos pequenos produtores. Em 1994, a série de ações chamada à época de “Jornada de Luta”, liderada pela  Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), pressionou o governo federal a criar o “Programa de Valorização da Pequena Produção Rural” (Provape). No ano seguinte, foi instituído o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com foco em promover uma fonte de recursos com baixa taxa de juros para o agricultor familiar.

O esforço dos trabalhadores valeu a pena, e não só para eles, mas para todo o país. O Pronaf cresceu e passou a produzir diversas linhas distintas de crédito: para mulheres, para jovens, para agroecologia, para uso de tecnologias ecologicamente corretas (como energia limpa e eficiência hídrica) e para desenvolver alimentos específicos, entre outros. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o conjunto dessas linhas de crédito permitiu o aumento de produção e produtividade de 55 alimentos consumidos pela sociedade brasileira.

 

Produtos orgânicos. Crédito: Luiz Felipe Silva

Nestes últimos 20 anos, o Pronaf tem fechado mais de 1 milhão de contratos anualmente – o pico foi registrado durante a safra 2005/2006, quando mais de 2,5 milhões de contratos foram firmados. Já são quase 30 milhões de acordos que  distribuíram R$ 221 bilhões em financiamentos para a atividade agrícola familiar. O crédito foi liberado para 2,6 milhões de unidades familiares e ajudou a empregar, diretamente, 12 milhões de pessoas. Seu resultado financeiro é altamente favorável: a taxa de inadimplência é menor que 1% – em maio, o endividamento das famílias brasileiras era de 24,2%.

A pesquisadora Isabela Assis Guedes, da Universidade Federal da Paraíba, afirma na dissertação Efeitos do microcrédito rural sobre a produção agropecuária que diversos estudos referentes ao efeito do microcrédito na agricultura familiar demonstram que o acesso ao crédito rural é capaz de estimular, de fato, a produção agrícola de pequeno porte no Brasil.

O primeiro grande caso de sucesso deste tipo de política pública de aplicação massiva foi registrado em Bangladesh, na década de 1970. Na época, a estratégia reduziu em 10% da pobreza rural no país e foi capaz de elevar 2,5 milhões de pessoas da pobreza extrema. Seu idealizador, Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2006.

Os autores Larry Reed e Sebastian Molineus, respectivamente, em Mapping Pathways out of Poverty e Policy Research Discussion on Microfinance, afirmam que o microcrédito apresenta números expressivos no combate à pobreza – dados de 2013 indicam que este modelo de financiamento beneficiou 211 milhões de produtores globalmente, sendo que 114 milhões deles viviam abaixo da linha da miséria. Reed propõe que até 2030, 175 milhões de famílias recebam recursos e possam sair da pobreza por meio de sua própria atividade produtiva.

Produção rural x produção urbana: além do crédito

Os pequenos produtores precisam, além de financiamento em condições especiais, de apoio técnico e logístico. É este tipo de suporte que a Arpad Spalding e o projeto Ligue os Pontos dão. Trata-se de um programa dedicado a ligar produtor a consumidor, de modo a criar demanda para os alimentos originais de sítios e chácaras das áreas rurais da maior metrópole da América Latina. São Paulo tem 28% de seu território entre zoneamentos rurais ou mananciais de relevância ambiental onde vivem 40 mil pessoas – a maioria (84%) com renda de até dois salários mínimos.

“O crescimento das grandes cidades levou a população a ocupar as áreas rurais e elas se reduziram em muito ou até desapareceram. Um problema é que essa população, esses produtores, foram esquecidos pelas políticas públicas”, se queixa Arpad. Ele explica que a liberação de crédito, que já não é fácil para produtores do campo, é ainda mais difícil para os da cidade. “Muitas vezes o agricultor tem dificuldade em conseguir a documentação e isso é ainda mais complicado nas cidades”, analisa.

Um desafio a mais dos produtores familiares urbanos é o acesso bancário ao crédito. Em bairros de característica mista de periferia e rural, como Parelheiros, no extremo sul paulistano, as instituições financeiras não operam este tipo de financiamento. “Na região [onde há 312 unidades produtivas], há apenas uma agência bancária, do Banco do Brasil, que não tem a linha rural. Sem recursos, os produtores vivem de acordo com sua própria capacidade de organização”, afirma o consultor.

Orgânico como revolução da agricultura familiar

Zundi Murakami, 78 anos, é filho de agricultor e cresceu trabalhando com as mãos na terra. Durante parte da vida, seu sustento se deu a partir da plantação de batata e cebola em um sítio de Parelheiros. Em 1998, o negócio quebrou e ele foi morar no Japão, onde juntou dinheiro durante pouco mais de dez anos. “Quando voltei [em 2008], aproveitei que tinha o terreno descansando lá e decidi plantar de novo. Dessa vez, comecei a fazer orgânico”, recorda.

Zundi Murakami. Crédito: Luiz Felipe Silva

Desde então, o negócio da família só cresceu. Zundi produz mensalmente 10 mil quilos de banana orgânica em um espaço de aproximadamente 5 hectares e emprega mais cinco familiares entre a roça e o comércio de seus produtos – isso sem precisar recorrer a agentes químicos.

Poucos quilômetros separam o sítio de Zundi do de Maria de Lourdes Bispo, também em Parelheiros. Apaixonada pelo contato com a natureza, Maria de Lourdes, 63 anos, decidiu voltar à chácara da família quando seu marido faleceu, em 2016. Criada na roça, sabia plantar de acordo com as técnicas que aprendeu com seu pai quando criança. “Sempre gostei de terra, jardim, plantinha… Mas só virei agricultora mesmo quando minha filha veio trabalhar comigo”, conta.

Regiane Bispo, 35 anos, decidiu se juntar à mãe com uma proposta nova: plantar tudo de forma orgânica. “Eu sou engenheira civil, mas estava procurando emprego e não conseguia me realocar. Então decidi que iria trabalhar com algo que fizesse bem para as pessoas e para o meio ambiente”, afirma. As duas passam o dia em função das plantações de beterraba, couve, rúcula, alface e outros alimentos que cultivam em sua terra. “A gente começa na roça às 8h e segue até escurecer. É cansativo, mas prazeroso: a gente é mais feliz, come melhor e ainda ouve o barulho dos pássaros enquanto trabalha”, conta. Zundi e Maria de Lourdes são duas dos mais de 30 produtores que integram a Cooperapas (Cooperativa de Agricultura Orgânica de Parelheiros).

Maria de Lourdes Bispo e Regiane Bispo. Crédito: Luiz Felipe Silva

“Nos últimos 15 anos, a agricultura orgânica resgatou a autoestima e a valorização da vida rural. Nas cidades, as pessoas percebem a importância de consumir orgânico e local, tanto para seu próprio bem estar quanto para um consumo mais sustentável”, dia Arpad.

A valorização da agricultura familiar, além de colocar comida em maior volume e maior qualidade na mesa de todos os extratos da sociedade, fomenta, sobretudo, uma produção responsável ecologicamente, inteligente socialmente e eficiente economicamente. “Incentiva as famílias a permanecerem no campo, torna os produtos mais baratos e promove organização social. Falta muito, mas o caminho é positivo”, conclui Arpad.

Conteúdo publicado em 8 de novembro de 2018

Veja Também